sábado, 26 de março de 2011

Eneida - Virgílio (Trad: Odorico Mendes)

De todos os livros que li no presente ano, a Eneida de Virgílio na tradução em verso de Odorico Mendes foi o mais difícil. A tradução possui uma linguagem arcaica e obscura; a opção tradutória de Odorico Mendes de traduzir metáforas literalmente gera versos obscuros e quase impenetráveis. O tradutor também acreditava na evolução e purificação da língua através das línguas clássicas, por esse mesmo motivo, há centenas de neologismos provenientes da morfologia e das palavras latinas.

Virgílio é um grande clássico da épica tradicional, e serviu de modelo estrutural e poético de vários autores que seguiram o gênero, dentre eles Lucano, Dante e Camões, e indiretamente os brasileiros Santa Rita Durão e Bento Teixeira. Virgílio foi um Best Seller de seu tempo, e suas poesias se faziam presentes nas escolas romanas. Sua Eneida é a grande epopéia nacional, mostrando a origem heróica e divina dos latinos, assim como foi a Ilíada de Homero. O tempo da diegese da Eneida é posterior à Guerra de Tróia, e conta a história do lider troiano Enéias em seu rumo à Itália. Há uma série de semelhanças com a Odisséia (que acontece em paralelo), por isso Eneida muitas vezes é considerada pouco criativa. Há semelhanças com Os Lusíadas também, devido a paixão de Camões pelos textos virgilianos, e portanto, vou resenhar o livro fazendo breves comparações com a epopéia grega e portuguesa.

Odorico Mendes foi poeta e tradutor, e suas traduções são bastamte poéticas, mas difíceis de ler, beirando o impenetrável. Odorico optou por traduzir a Eneida em decassílabos heróicos (a métrica latina funciona de forma diferente da portuguesa) e sem rimas, respeitando a versificação latina que não possui rimas (apesar da facilidade da língua em rimar). Traduziu a Eneida completa (levando em consideração que Virgílio morreu sem terminar a obra) em seus 12 longos cantos.

Como toda epopéia tradicional, a Eneida possui uma Proposição ao tema (narrativa de Eneias) e em seguida um Invocação às musas pedindo inspiração. Eneida começa in media res, já enquanto Eneias está em alto mar, após a guerra de Tróia. No primeiro canto conhecemos Eneias e Juno, que odeia os troianos. Assim como em Os Lusíadas, em Eneida há uma assembleia dos deuses e Vênus está ao lado dos troianos enquanto Juno lhes quer a destruição (nos Lusíadas Juno é substituida por Baco, provavelmente devido a imagem de sátiro e orgiástica do deus do vinho). Há uma tempestade no mar e Eneias conhece a rainha e viuva Dido, para quem narra o passado de sua nação. Em Os Lusíadas Vasco da Gama também narra o passado de sua nação até a hora da partida, entretanto, em Eneida a narração foca-se na guerra de tróia e seus acontecimentos, culminando na queda da nação troiana.  Toda essa narração dura dois cantos inteiros (II e III).

Até esse ponto, chegamos a duas grandes conclusões (além de que o livro é dificílimo de se ler). A primeira é que de todos os heróis épicos que conheço (Aquiles, Ulisses, Beowulf, Siegmund, Siegfried, Arthur, Lancelot, Amadis de Gaula, Hércules, Teseu, Vasco da Gama entre outros), Eneias é o PIOR herói que já vi. Não é por sua falta de caráter (que vocês verão mais a frente), mas por não ser nem um pouco carismático, além de ter o hábito de argumentar seu heroísmo, ao invés de ser heróico de fato. Não gosto de Eneias e pronto. E a segunda observação é que Eneida é fraca na descrição dos cenários e acontecimentos. As batalhas narradas por Eneias são sem vida.

Mas não devemos desistir do livro, pois, se Eneida está até hoje no cânone, há de haver algum motivo. Além disso, não iniciamos o 4º canto. Apesar do personagem principal e da narração do mesmo serem fracas, há até aqui duas grandes personagens, pelo qual valeria a pena ler o livro inteiro. Por coincidência, as duas são personagens femininas: Juno e Vênus. Nunca na literatura antiga foi criado personagens femininos dessa grandeza, nem mesmo na lírica de safo. Por algum motivo, o ódio de Juno (e o amor de Vênus) pelos troianos ainda está ligada à competição da beleza incitada por Éris, por isso ambas desejam possuir o destino pela nação de Páris e ambas desejam contrariar a outra. Vênus e Juno são como irmãs opostas, e Jupter assume o papel de pacificador. Juno representa mais, representa a vingança e poder feminino sobre a natureza e o destino, e é genial. Falo mais sobre elas a seguir.

No quarto canto, Dido ama Enéias, que a possui e depois decide abandoná-la. Nem mesmo essa atitude faz dele um melhor personagem, pois Eneias não abandona por vontade, nem objeta. O herói é a todo momento manipulado, seja pelos deuses ou familiares. De qualquer modo, esse episódio lembra a ilha nínfica onde Ulísses se perde, embora Ulísses seja mais heróico do que Enéias, e o ambiente é mais bem escrito por Homero que por Virgílio. Há também uma certa relação com os lotófagos da Odisseia e com a emboscada dos Lusíadas.

Dido pela primeira vez aparece aqui como grande figura. Decide amar Enéias (péssima escolha, adimito, mas é uma decisão firme) e deseja torná-lo rei. Possui um lirismo amoroso brilhante na fala, e quando Eneias informa que vai partir, vemos o lado autoritário de Dido, que surge como quase projeção terrena de Juno (mas Juno será ainda mais impressionante):
[Dido:]"Nem mãe deusa, nem Dárdano hás por tronco;
Gerou-te o Cáucaso em penhascos duros,
Traidor! mamaste nas hircanas tigres.
Que dissímulo? a que desdém me guardo?
Deu-me ao pranto uma lágrima, um suspiro?
Da amante se doeu? dignou-se a olhar-me?
Que afronta é mais pungente?... Ah que até Juno
Nem Satúrnio isto vê com rectos olhos.
Fé segura não há. Náufrago e pobre
O recolhi, demente o pus no trono,
Do estrago as naus remi, da morte os sócios.
[...] Com negro facho ao longe hei-de acercar-te;
E, quando a morte fria aos órgãos solva
O almo alento, ser-te-ei contínua sombra,
Terás o pago, hei-de, perverso, ouvi-lo,
A nova há-de baixar-me ao centro escuro."
(p.182)
 Mas a atitude de Dido não fica em seu discurso autoritário. Dido é uma representação magnífica, e após a partida de Eneias, Dido suicida-se. Seu suicídio não aparece aí como a fraqueza feminina, mas como sua força. Se você leu Os Sofrimentos do Jovem Werter e não se convenceu de que o suicídio é prova de força e não fraqueza, deve ler Eneida, e, ao menos nesse caso específico (o suicídio de Dido) não pode-se dizer que há fraqueza. Há a força devoradora de Juno. Dido busca controlar o destino, e sacrifica-se, por ódio e destruição, não pelo sofrimento.
[...] Em cróceas penas,
Cambiando cores mil do Sol oposto,
Róscida a núncia vem parar sobre ela:
"O tributo a Plutão mandada levo;
Do corpo eu to desligo." Disse, e o corta:
Foi-se o calor e evaporou-se a vida.
(p.191)
 No 5º canto temos Eneias na Sicília, onde fazem jogos (e há várias referências que dificultam a leitura) e deixam as mulheres, os velhos e os desencorajados. Nesse canto temos uma belíssima alusão de Vênus à Juno, onde Vênus pede proteção de Netuno contra a ira de Juno. Mais uma vez, fico encantado pelo atrito de ambas.
Entretanto, a Neptuno aflita Vénus
Tais queixas despregou: "Senhor, a activa
Atroz ira de Juno insaciável
Me abate a suplicar. Nem dó, nem tempo,
Jove nem destino, infandos ódios
Quebra ou lhe adoça. Haver não basta aos Frígios
Consumido e apagado a grã cidade,
E as relíquias trazer de transe em transe;
De Tróia inda persegue a cinza e os ossos:
Desta sanha o motivo ela que o saiba.
 Após a partida, há a cena da decida aos infernos, onde Eneias antevê a grandeza de Roma, a nação que ele ajudará a fundar na Itália. Não é a criatividade o ponto mais forte dessa passagem, pois Ulísses também dece aos infernos em Odisséia, assim como Orfeu, Hércules e uma centena de heróis. O que me incomoda nessa passagem é que praticamente todo herói greco-romano deve ir ao inferno ao menos uma vez na vida para ser herói, e Eneias aparentemente só vai para o domínio de Plutão para legitirmar-se como heroi. A desculpa é ver seu pai. A decida de Eneias é bastante sem graça, e sua preparação é fraca. Eneias se utiliza de uma estrutura argumentativa para que se faça a relação Heroísmo->Inferno, estrutura essa que se repete em os Lusíadas. Ambos procuram legitimar o heroísmo da nação a partir da comparação entre os feitos de heróis com seus personagens. Duvida? Veja essa passagem:
Pois que é do inferno a entrada e aqui, me afirmam,
Do revesso Aqueronte o lago obscuro,
Ir, só te imploro, ao caro pai me caiba:
Mostra-me e patenteia as sacras portas.
Eu, nestes ombros, dentre a chama e infindas
Chuças hostis o arrebatei, salvei-o;
Ele enfermo comigo afrontou mares,
O pélago aturava e o céu minazes,
Com mais vigor de que à velhice é dado.
Requerendo ordenou-mo, e humilde que hajas
Dó do filho e do pai deprecar venho:
Tudo se te faculta; Hecate embalde
Não te propôs, ó casta, ao luco averno.
Se Orfeu pôde avocar da esposa os manes,
Em trácia acorde cítara fiando;
Se, com alterna morte o irmão remindo,
Pólux tanto essa via anda e desanda,
(Por que a Teseu citar e o grande Alcídes?)
Eu provenho também do rei supremo."
(p.222)
 Lembra-me quando Camões compara as histórias portuguesas com as gregas, romanas e hebraicas, a fim de legitimar portugal como um império heróico. No inferno Eneias vê o futuro de roma e a glória de Augusto César, parte notadamente política da obra, levando em consideração que o imperador Augusto era amigo pessoal de Virgílio, e autor da ideia de uma epopéia nacional. O mesmo acontece com os Lusíadas, só que Augusto é substituido pelo rei Sebastião e o inferno é substituído por um "paraíso" (lembrando que para os latinos só havia um mundo dos mortos), onde Gama vê o futuro glorioso de portugal pela "máquina do mundo".

Eneias chega à Itália, mas juno incita uma guerra entre Turno e Eneias, e assim como predisse Vênus, deseja a destruição completa dos troianos. É uma guerra violenta, e Vênus ajuda Eneias. Durante a ausência de enéias, os italianos atacam o acampamento troiano, que resistem bravamente. Nessa cena morre Niso e Euríalo, e é a morte heróica mais sem graça que eu já vi. Eneias volta e pela primeira vez dá uma prova melhor de heroísmo, apesar de ainda ser o mesmo Eneias manipulado de sempre. Antes da volta de Eneias, novamente há uma assembleia dos deuses, onde Jupter assume o papel do destino, e decreta o fim da guerra (Juno não fica satisfeita).
[Juno:]"[...] Roubar da aquiva garra o filho podes.
Por vã névoa trocá-lo; a frota em nínfas
Tu podes converter: um pouco a Turno
Socorrermos é crime. Eneias tudo
Ausente ignora: pois ignore ausente.
Que! tens Pafos, Citera, Idálio; e tentas
Um chão de guerras prenhe e a peitos feros?
Nós de Ílio os débeis restos subvertemos,
Ou quem míseros Troas contra os Gregos
Açulou? Foi por nós que o rapto armado
Solvera de Ásia e Europa as alianças?
Que o Frigio adúltero expugnara Esparta?
Eu lides fomentei com paixões torpes?
Teu medo então convinha: tarde surges
Com injusto queixume e fútil bulha."
(p.313)
 Me tornei fã dessa mulher. Olhem o poder de argumentação, as paixões na fala, a ira contra Vênus. Essa resposta à ordem jupteriana faz a relação completa do ódio de Juno pelos troianos. É na verdade o ódio por Vênus, que os defende desde o incidente com Éris, e mais que isso, põe a culpa em cima de Vênus, e pelos argumentos, vemos que de fato a deusa do amor tem culpa. Depois da esclarecedora passagem, Eneias volta e os troianos começam a vencer os italianos. Turno vence mais um herói troiano, mas é perseguido por Eneias. Juno implora para salvar Turno, e Jupter concede esse direito; Turno então é salvo por Juno.

Há uma trégua e sepultamento dos mortos. Há uma discussão interna entre os italianos, se deixam os troianos em paz, se deixam-se unir a eles, ou se continuam o combate. Há muitas perdas de ambos os lados. Juno incita mais uma vez o combate entre Eneias e Turno, o que me faz pensar que Jupter não encarna bem o papel de "destino", nem possui poder de controle grande sobre os deuses olímpicos. Mas Juno é uma personagem mais forte.

Turno e Eneias decidem resolver a guerra com um combate singular, que decidirá se Eneias se casará com Lavínia (filha do rei) e terá aliança eterna com os latinos, ou se vai embora para nunca mais voltar. Como Eneias é o heroi da epopéia e ainda estamos no século I antes da era cristã, Eneias vence a luta. Apesar de vencer a luta, a decisão foi tomada no plano superior (o que mostra que Eneias não tem o controle sobre seu destino), e Juno, derrotada, sai vitoriosa. A ultima palavra entre os deuses é de Juno, que se cansa de se envolver na guerra mortal, e opita pela vitória de Eneias, entretanto, seu poder destrutivo e vingativo ainda se faz presente de forma poderosa. Eis quem decide o destino mortal:
[Juno:] "Teu querer conhecendo, eu constrangida
Abandonei, senhor, a turno e o mundo;
Senão, curtindo ultrajes, não me viras
Neste ar sòzinha, mas na acção, de flamas
Cingida, em prélios consumindo os Frígios. [...]
Desisto alfim; batalhas já me enojam.
Favor obsecro não sujeito aos fados,
Pede-o Itália e dos teus a majestade:
Casamentos embora a paz componham,
E leis o pacto asselem; não permitas
Que os Latinos indígenas, perdido
O antigo nome, Teucros se apelidem,
Nem mudem língua e trajo. Eterno viva
O Lácio, os reis Albanos; herde Roma
O itálico valor, propague e brilhe:
Tróia acabou, também seu nome acabe."
(p.384)
O poder e personalidade de Juno são formidáveis. Finaliza-se o conflito e o livro.

Para quem se interessar por essa tradução, está disponível gratuitamente no Instituto Odorico Mendes, além de ser editada até hoje. Odorico foi o primeiro a traduzir a Eneida em português, além de traduzir a Odisseia e a Ilíada. Minha edição é da antiga W.M.Jackson Editores, e NÃO CONTÉM NOTAS, nem nº de versos, que outras edições vão possuir. Foi um prezer ler esse livro, pois, muito mais que um entretenimento, desafiou a minha capacidade intelectual. Já disse aqui como amo livros que desafiam a nossa inteligência, e esse é um deles. Foi maravilhoso também conhecer essa representação de Juno, que é magnífica (apesar do herói absolutamente sem carisma).

Esse livro é bônus do DL, e foi feito em decorrência do tema de Março. Clique aqui para ver a página de Março.

Nota do Elaphar: 9,6

Edição Lida:
VIRGÍLIO. Geórgicas & Eneida. Trad: António Feliciano de Castilho & Odorico Mendes. São Paulo: W.M.Jackson, 1949, 391p

2 comentários:

  1. Uau! Eneida possui um estilo bem elevado. Seu texto é bastante elucidativo, e ao término, só consigo pensar que ainda quero ler Eneida...Bjs

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  2. -Vivi; Eneida é magnífico. Não é a toa que está vivo e influênciando depois de mais de 2000 anos. O difícil é compreender a obra, mas se lida com sucesso, é um prazer sem igual.

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