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quarta-feira, 22 de junho de 2011

Fausto - Goethe (Tradução de F. de Castilho)

Pintura de Eugène Delacroix
Estava quase pensando que já havia lido tudo o que havia de bom no genero teatral, mas sempre um texto novo pode nos trazer grandes surpresas. Goethe dispensa comentários: é o nome mais famoso da literatura alemã e um milagre na história da literatura, um dos poucos escritores que são geniais em todos os gêneros que escreve (no caso de Goethe os gêneros épico, lírico, dramático, novelístico, satírico, didático, epistolar e científico). A obra Fausto é de longe seu mais famoso trabalho, ao lado dos Sofrimentos do Jovem Werter, Wilhelm Meister e alguns poemas superfamosos como O Aprendiz de Feiticeiro (Der Zauberlehrling), O Erlkönig e a Dança Macabra (Totentanz).

O mito de Fausto é bastante recorrente na literatura (principalmente em língua alemã), e se baseia em uma figura histórica. Fausto era um sábio que pouco se sabe sobre sua vida, e mitologicamente crê-se que Fausto fizera um pacto com o demônio. Marlowe foi o primeiro a representa-lo em um texto de qualidade literária, mas no romantismo alemão centenas de escritores escreveram sua versão do mito. Mais recentemente temos a versão de Fernando Pessoa (Fausto, uma tragédia Subjetiva) e a versão de Thomas Mann (Doktor Faustus). Sem sombra de dúvidas, o Fausto goethiano é o mais famoso, e foi base para inúmeras adaptações (como a abertura de Wagner, a ópera francesa e o episódio do Chapolin Colorado).

Fausto é uma tragédia, contendo todos os elementos para ser considerada como tal, mas muito se critica quanto a obra Fausto ser ou não ser teatral. Em primeiro lugar há um "Prólogo do Autor", onde o autor fala sobre si e a obra, em seguida vem um "Prólogo no Palco" bastante metalinguístico, onde o Poeta, o Empresário e o "Gracioso" (Lustige Person, ou seja, bobo, palhaço) discutem sobre a criação e apresentação da peça. Além desses dois elementos fora do comum (que não são muito próprios do teatro), há um Intermezzo tão fragmentário e estranho (a lá Sousândrade) que sua encenabilidade é questionável. Desconsiderando esses elementos, a peça é absurdamente enorme para um texto teatral (a primeira parte da tragédia tem mais de 300 páginas), as instruções dramáticas parecem que foram escritas para ser lidas e não encenadas, e Fausto possui algumas cenas que fariam a cena da "Imolação dos Deuses" (de Götterdämmerung de Wagner) parecer uma peça escolar. Soma-se a tudo isso a dificuldade de compreender o texto, mas vamos por partes...

O livro começa com um soberbo prefácio de Otto Maria Carpeaux (a minha edição da Jackson Editores), que ajuda a esclarecer muitos pontos da obra que podem parecer obscuros, além de mostrar as absurdas diferenças entre "Fausto", uma tragédia" e "Fausto, segunda parte da tragédia". Lastimavelmente o livro não contém a "segunda parte" (que é uma obra autônoma), já que Castilho não a empreendeu traduzi-la. A esplicação de Castilho é simples: "extravagâncias absurdas [da segunda parte] são muito mais repugnantes ao bom senso". É importante notar que Castilho não entendia uma frase de alemão ao traduzir o Fausto, e portanto, traduziu por interposição, o que em poesia não é totalmente recriminável.

A obra começa no já citado "Prólogo no Palco", e segue para um "Prólogo no Céu" (que castilho considera já como início da peça [Quadro I]). Um coro de Anjos canta, quando o demônio (Mefistófeles) conversa com o Senhor, que lhe pede informações sobre o Fausto. Aí Mefistófeles resolve propor um desafio ao Senhor, que é prontamente aceito.
      MEFISTÓFELES
Quer Vossa Majestade uma apostinha?
Verá se também este se não perde,
uma vez que me deixe encaminhá-lo.
      O SENHOR
Deixo, enquanto for vivo. Onde há cobiças,
é natural o errar.
     MEFISTÓFELES
                              Muito obrigado.
Pois co’os vivos também é que me eu quero;
com defuntos embirro; o meu regalo
é tentar caras rechonchudas, frescas;
sou como o gato: de murganho morto
não faço caso; o meu divertimento
é correr e arpoar aos que me fogem.
     O SENHOR
Como queiras. Permito-te que o tentes.
Se lograres caçá-lo desbaptiza-o,
e inferna-o muito embora. Mas, corrido
fiques tu in æternum, se confessas
que o bom, dado que errar às vezes possa,
nunca nos sai da estrada, a recta, a nossa.
     MEFISTÓFELES
Bom. Não lhe há-de tardar o desengano,
Ganhei tão certo a aposta, como é certo
chamar-me eu Mefistófeles. Se eu vingo
na empresa, a palma do triunfo é minha.
Há-de se regalar de comer terra,
como a tia serpente.
 Depois parte para o inicio da tragédia propriamente dita, com um famoso monólogo de Fausto. Segundo Carpeaux, os jovens decoram passagens inteiras dos monólogos do Fausto na alemanha.
      FAUSTO (dessocegado, sentado numa poltrona de sola e pregaria de cobre, com a cabeça fincada nas mãos, e os cotovelos na mesa de estudo, na qual derrama luz frouxa um candeeiro aceso.)
Ao cabo de escrutar co’o mais ansioso estudo
filosofia, e foro, e medicina, e tudo
até a teologia... encontro-me qual dantes;
em nada me risquei do rol dos ignorantes.
Mestre em artes me chamo; inculco-me Doutor;
e em dez anos vai já que, intrépido impostor,
aí trago em roda viva um bando de crendeiros,
meus alunos... de nada, e ignaros verdadeiros.
O que só liquidei depois de tanta lida,
foi que a humana inciência é lei nunca infringida.
Que frenesi! Sei mais, sei mais, isso é verdade,
do que toda essa récua inchada de vaidade:
lentes e bachareis, padres e escrevedores.
Já me não fazem mossa escrúpulos, terrores
de diabos e inferno, atribulados sonhos
e martírio sem fim dos ânimos bisonhos.
[...]
Percebe-se que o Fausto de Goethe é inquieto, não quer saber muito, mas sim TUDO, missão fadada ao fracasso. Desde o início da narrativa me identifiquei muito com o personagem, entretanto, essa identificação vai se estinguindo no decorrer da narrativa (ainda bem). Segue-se uma bizarra cena onde Fausto conversa com um Espírito. Entra Wagner, sai o espírito. Wagner é um outro tipo de sábio, aquele que tanto Fausto quanto Goethe deploravam. Depois de mais um monólogo de Fausto, o protagonista tenta suicídio, mas ao ouvir sons da igreja ao lado (que não aparece no palco) desiste da ideia por conta dos sons lhe trazerem lembranças.

As próximas passagens são entre Fausto e Wagner numa rua (com um pequeno prólogo dos passantes), aí é que podemos compreender as diferenças de filosofia e objetivos dos dois personagens. Posteriormente, mais um monólogo de Fausto (é, ele fala mais sosinho que o Hamlet de Shakespeare), que está acompanhado de um cachorro. Nesse monólogo há a outra passagem famosa de Fausto, onde o personagem transforma o "No princípio era o verbo" ("Im Anfang war das Wort!") das escrituras em "No princípio era o Ato" ("Im Anfang war die Tat!", para Castilho Ação). O cachorro começa a metamorfosear-se (atrapalhando o monólogo) para enfim transformar-se em Mefistófeles. Segue-se o primeiro dos muitos diálogos entre Mefistófeles e Fausto.

É extremamente interessante a caracterização que Goethe dá ao diabo. Mefistófeles é bastante esperto, mas não aparenta. Mefistófeles é irônico, seco, até certo ponto cheio de graça. Depois de alguns diálogos, Mefistófeles fará uma proposta à Fausto: Fausto será jovem e o Mefistófeles o servirá na terra, porém, se Fausto ficar satisfeito Fausto deverá servir Mefistófeles no inferno.
    MEFISTÓFELES
                                        Então já pode
no pacto conchavar-se. O que eu lhe afirmo
é que estes dias que passarmos juntos
lhe hão-de por minhas artes dar tais gostos
quais os não teve alguém.
     FAUSTO
                                         Pobre diabo,
que hás-de tu dar-me? O espírito de um homem
como eu sou, foi jamais compreensível
aos da tua relé? Tens iguarias
que não matam a fome; oiro que fulge,
mas que igual ao mercúrio, escapa aos dedos;
jogo em que é certa a perda; uma beldade
que até nos braços meus soltando arrulhos,
já está piscando o olho ao meu vizinho;
pompas de glória, um fumo!
                                             O que eu preciso,
se o tens, são frutos a pender de copa
sempre frondosa, e que antes de apanhados
não tenham já por dentro o podre e os vermes.
      MEFISTÓFELES
Bem; tudo isso há-de ter; conte comigo
Desde agora, amiguinho, à rédea solta.
Folgar e mais folgar! Leva de escrúpulos!
Tudo quanto bem sabe, é permitido.
       FAUSTO
Se eu me acosto jamais em fofa cama,
contente e em paz, que nesse instante eu morra!
Se uma só vez com falsas louvaminhas
chegares por tal arte a alucinar-me
que eu me agrade a mim próprio; se valeres
a cativar-me com deleites frívolos,
súbito a luz da vida se me apague.
Vá! queres apostar?
      MEFISTÓFELES
                                   Se quero! Aposto.
       FAUSTO
Aperto mais: Se me chegar momento
a que eu diga: «Demora-te! És formoso»
então aos teus grilhões entrego os pulsos;
então a morte aceito; os sinos dobrem;
já livre estás de mim. Dessa hora avante,
quede o relógio! Caiam-lhe os ponteiros!
Acabou-se-me o tempo.
        MEFISTÓFELES
                                        Olhe o que afirma,
que entre nós outros nada esquece.
         FAUSTO
                                                         Embora!
Não me obriguei de leve. O que eu padeço
não é escravidão? Ser logo servo
de outro ou de ti, que monta?
      MEFISTÓFELES
                                                Às suas ordens,
desde já. Tem a nata dos serventes
para este bródio de barrete fora,
meu querido Doutor!
                                  Mais uma nica.
Há morrer e viver. É bom primeiro
pôr o preto no branco: um tudo-nada;
duas regritas só.
      FAUSTO
                            Que é! Papeladas
até no inferno, rábula! Bem mostras
entender pouco do que seja um homem.
[...]
Aqui surge a figura do pacto com o demônio assinado com sangue, tão copiado por muitos outros textos. Segue-se uma cena onde Mefistófeles fala a um rapazola que busca o conhecimento científico. É interessante o desprezo que Mefistófeles tem pelas ciências e pelo "progresso". Apenas agora começa a aventura de Fausto e Mefistófeles.

A primeira parada da dupla é em um bar de jovens. Fausto fica horrorizado com a "brutidade" dos jovens no bar e Mefistófeles prega uma peça nos jovens (não tão bizarra quanto as peças que o diabo de O Mestre e a Margarida prega nos habitantes de Moscou, mas ainda assim levemente divertida). Fico imaginando alguem representando essa cena, e como fazer a gota do líquido que os jovens bebem à voro transformar-se em chama do inferno e depois minguar. Claro, não é tão difícil de representar quanto a próxima cena, onde Fausto irá beber um líquido de onde sai labaredas.

A próxima cena é na casa de uma bruxa. Mefistófeles levará Fausto para beber uma poção, que fará o protagonista se apaixonar por Margarida (que aparecerá mais a frente). Essa cena é interessantíssima em cada parte e aspécto.
     FAUSTO
Mas porque há-de ser logo a preferida
a tal mondonga velha? Não podias
preparar-me tu próprio a beberagem?
     MEFISTÓFELES
Belo divertimento! Eu preferia
gastar o tempo em construir mil pontes.
Para arranjar os filtros desta casta
quer-se, além do saber, paciência e muita,
e atenção de anos largos; só co’o tempo
é que se alcança o fermentar completo
do líquido eficaz. Pois a quantia
d’ingredientes raríssimos! É certo
que o diabo é quem os sabe, e ensina tudo;
mas lá para os estar manipulando
é que não tem pachorra.
 Além dessa passagem, há muitas outras bem legais nessa mesma cena. A bruxa entra e não reconhece o diabo, que fica irado. Mefistófeles não quer ser chamado de Satanás pois esse nome "anda há já muito entre outros mil escritos/no volumoso ról das fábulas e mitos". A bruxa prepara a poção a fala expressões incompreensíveis (que lembra um pouco as Bruxas de Macbeth).
     A FEITICEIRA (empurra Fausto para dentro do círculo; e põe-se a ler no livro,
declamando com grande ênfase
)
Agora me explico,
Do um, dez fareis;
o dois deixareis;
o três uguareis;
e já sondes rico.
Lançar quatro fora.
Dos cinco e dos seis,
sete e oito fareis.
São estas as leis,
e andai-vos embora.
E os nove são um;
e os dez são nenhum.
E tenho acabada,
segundo cumpria,
toda a tabuada
da feitiçaria.
     FAUSTO (a Mefistófeles)
Ela estará com febre? A modo que extravaga.
     MEFISTÓFELES
Ai! de pouco se admira. Inda por ora a saga
do intróito não passou; e todo o calhamaço
vai no mesmo teor. [...]
     A FEITICEIRA (continuando)
A potência da ciência
que anda oculta em névoa escura,
só revela a sua essência
ao mortal que a não procura.
     FAUSTO
Que absurdo nos diz ela? A tantos disparates
já se me oira a cabeça; oitenta mil orates
não doidejavam mais.
 Depois de beber a poção (e um grito mudo de triunfo de Mefistófeles: "Que tal!/Coa dose que tomou, qualquer mulher que aviste/vai julgá-la outra Helena./ Ah sábio, alfim caiste!"), Fausto avista Margarida e por ela se apaixona. Fausto exige a Megistófeles a presença de Margarida e o demônio usa-se de retórica para fazer Fausto de bobo. Segue-se um quadro no quarto de Margarida, onde Mefistófeles esconde uma caixa de Jóias. Margarida chega no quarto e canta aquele que é um dos poemas mais famosos de Goethe em língua portuguesa, com 7 traduções diferentes até onde minhas pesquisas foram efetivas. A Canção do Rei de Tule, que também é uma ária da ópera francesa Fausto. Esse poema já havia sido publicado em outro livro de Goethe, e é republicado em Fausto. Isso também contribui para aumentar a aparência de que Fausto é um grande recorte e colagem da produção de Goethe em mais de 30 anos (que demorou compondo essa obra). Eis a canção na tradução de Castilho:
Reinava em Tule algum dia
um bom Rei tão fino amante,
que até morrer foi constante
à dama com quem vivia.

À hora do passamento
deixou-lhe ela um vaso d’oiro,
que foi do Real tesoiro
o mais falado ornamento.

Punham-lho sempre na mesa;
só por aquele bebia;
e o choro que então vertia
causava a todo tristeza.

Vendo o seu termo chegado,
repartiu pelos herdeiros
os bens, té aos derradeiros,
excepto o vaso adorado.

Foi isto em jantar de mágoas
que El-Rei deu à fidalguia,
em torre herdada que havia
ao rés das marinhas águas.

Como El-Rei houve bebido
o seu último conforto,
co’o braço já quase morto
levanta o vaso querido,

e por não deixá-lo ao mundo,
da janela ao mar o atira.
Ondeia o vaso, revira,
enche-se, e desce ao profundo.

No mesmo triste momento
em que o vaso se abismava,
o Rei seus olhos cerrava,
soltando o último alento.
 E aqui em uma versão um pouco mais decente, feita por Antero de Quental:
Era uma vez um bom rei
Em Tule, essa ilha distante,
Ao morrer, deixou-lhe a amante
Um copo de oiro de lei.

Era um copo de oiro fino
Todo lavrado a primor;
Se fosse o cálix divino
Não lhe tinha mais amor.

Seus tristes olhos leais
Não tinham outra alegria:
E só por ele bebia
Nos seus banquetes reais.

Chegada a hora da morte
Põs-se o rei a meditar
Grandezas da sua sorte,
Seus reinos à beira-mar.

Deixava um rico tesoiro,
Palácios, vilas, cidades;
De nada tinha saudades,
A não ser do copo de oiro.

No castelo da devesa,
Naquelas salas sem fim,
Mandou armar uma mesa
Para o último festim.

Convidou sem mais tardar
Os seus fiéis cavaleiros,
Para os brindes derradeiros
No castelo à beira-mar.

Então, vazando-a de um trago,
E com entranhada mágoa,
Pôs nas ondas o olhar vago
E atirou a taça à água.

Viu-a boiar suspendida,
'Té que as ondas a levaram
Os olhos se lhe toldaram,
E não bebeu mais na vida!
E a minha tradução ruim para o primeiro verso (seguida do "original em parênteses"):
Em Tule vivia um rei (Es war ein König in Thule)
Que, fiel, a sua dama (Gar treu bis an das Grab)
Uma taça de ouro em lei (Dem sterbend seine Buhle)
Deixou-lhe na eterna cama. (Einen goldnen Becher gab.)
Tá legal, chega de poesia lírica. Me desculpem as divagações, é que sou tão fã de poesia que me deixei levar... Voltando ao drama...

Pulando uma série de episódios menos importantes (mas nunca sem importância, mas como isso é uma resenha não posso falar de todos os inúmeros episódios de Fausto), Mefistófeles arruma uma maneira de aproximar Margarida e Fausto, aproveitando a morte do marido de Marta (amiga de Margarida), pretendendo usar Fausto como testemunha da morte (apesar de nenhum dos dois terem estado no local da morte, não duvido de Mefistófeles, afinal, de morte ele entende). Há entre Fausto e Mefistófeles um diálogo que ainda está muito atual:
     FAUSTO
É previdente a mulherzinha;
mas então claro está que antes da coisa,
temos de ir ver em Pádua a sepultura.
     MEFISTÓFELES
Santa simplicidade! O que é preciso,
é jurar que se viu,
     FAUSTO
                                Se não me alvitras
coisa melhor, gorado está o ajuste.
    MEFISTÓFELES
Beatíssimo varão! Gosto do escrúpulo.
Pois nunca nunca, em toda a sua vida,
deu testemunho falso?
                                    Que de vezes
não haverá, com magistral entono,
coração firme e intrépido semblante,
declarado o que é Deus! aberto o arcano
do mundo e das míriades dos entes
que o povoam! do homem, co’o sem conto
de afectos, de paixões, de pensamentos,
que n’alma e coração lhe tumultuam!
Meta, bem dentro, a mão na consciência,
e diga-me se tinha dessas coisas.
mais noção que da morte do Espadinha?
     FAUSTO
És, foste, e hás-de ser sempre um mentiroso,
e um sofista de marca.
     MEFISTÓFELES
                                       É isso: ápodos,
porque antevejo o que o Doutor não pesca:
que amanhã, por exemplo, o escrupuloso
há-de enganar, jurando-lhe mil honras,
e amores mil, a pobre Margarida.
     FAUSTO
E a-la-fé que não minto em protestar-lhos.
[...]
Seque-se a conquista de Margarida. Mefistófeles também conquista Marta, o que não dá em nada e nem é falado na obra. Há um interessante diálogo sobre religiosidade, que, longe de ser puro apologismo ou sofisma é deveras interessante. Há um afastamente de algum tempo (o tempo da diegese da peça é algo muito dificil de se tira) entre Fausto e Margarida. É uma das partes de maior lirismo amoroso da obra. Os dois se reencontram e planejam cosumar o amor. Margarida conversa com outra amiga sobre isso, e a amiga repreende. Aí sai mais uma passagem que ainda se mantém bem atual e bem coerente com a cultura brasileira:
MARGARIDA, ()
(Tomando também da fonte o seu cântaro, e partindo-se com ele para casa, em direcção diversa da de Luisinha)
Também eu no meu tempo, em vendo moça errada,
logo a punha por monstro: a língua era uma espada,
e feita eu própria ré de atroz descaridade
benzia-me, e ficava impando de vaidade!...
E hoje... incursa no mesmo!!
(Após alguns momentos)
                                              Oh! Deus! mas quem podia
livrar-se de um prazer, que as pedras fundiria?
[...]
 Segue-se mais um poema de Goethe que não pertencia à fausto, e logo depois o monólogo de Valentim (irmão de Margarida, e não, não me esqueci de falar sobre ele, Valentim só aparece agora e só depois ele é apresentado como irmão de Margarida, sim, a leitura de Fausto é meio confusa), seguido do confronto entre Fausto (ajudado por Mefistófeles) e Valentim, que culmina na morte do segundo. A próxima cena é uma sombria cena naa Igreja, no funeral de Valentim, com a presença de espíritos.

As ultimas cenas são as mais estranhas da dramaturgia. Primeira é uma mistura caótica de personagens aparecendo e agindo como num baile. A outra cena é tão mais estranha está fora e dentro da peça (Áureas Núpcias de Oberon e Titânia - Intermezzo). E vocês pensavam que a poética ultrafragmentária surgiu apenas no modernismo? Essa passagem me lembra as decidas ao inferno do Guesa de Sousândrade.

E por fim, depois de um diálogo entre Fausto e Mefistófeles, Fausto entra na prisão para buscar a sua amada que foi presa por matar a mãe e o filho depois de enlouquecer (e não, também não esqueci de falar sobre isso). Essa cena é sombria e sublime. Termina com a dicotomia entre a condenação e a salvação. Termina a obra mas não a história de Fausto. O livro termina com um gostinho de quero-mais, entretanto, todos sabem que a "Segunda Parte da Tragédia" nada tem de ligação com a primeira, mas é uma série de mais outras passagens de incompreensível conexão definitiva para o nosso pensamento.

Fausto é uma Obra Prima e tem motivos para estar no cânone e influenciando o pensamento até os dias de hoje. Uma obra magnífica, embora difícil. A tradução de Castilho deixa muito a desejar no quesito "lirismo". O estilo de Castilho é falso, plástico, granítico. Há na tradução de Castilho algumas passagens magníficas, mas outras são tão de mal gosto que não merecem nem ao menos ser comentadas. Apesar de ser uma obra dramática, presta mais ao papel de ser "lida como teatro" do que "encenada como teatro". A nota do livro só é mais baixa pois analiso o livro como um todo (de produção gráfica, prefácio, conteúdo à tradução), e a tradução de Castilho deixou a desejar um pouco.

Esse livro é um livro bônus do Desafio Literário do mês de Junho. A tradução de Castilho pode ser adquirida gratúitamente no site do Domínio Público ou da Universidade de Aveiro. O livro pode ser achado facilmente em sebos e livrarias, em outras traduções. Há pelo menos 5 traduções integrais da primeira parte do Fausto em português (sem incluir uma do Fausto Zero [Urfaust] pela Christine Röhrig).

Nota do Elaphar: 9,6

Edição Lida:
GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto. Prefácio de Otto Maria Carpeaux. Trad: António Feliciano de Castilho. São Paulo: W. M. Jackson, 1960, 323p. XXXVp. (Clássicos Jackson, v.15)

segunda-feira, 28 de março de 2011

O Anel dos Nibelungos (Götterdämmerung) - Richard Wagner

Götterdämmerung representado em Bayreuth
Demorei, mas estou concluindo com Götterdämmerung o ciclo épico-dramático O Anel dos Nibelungos (Der Ring des Nibelungen) do escritor e músico Richard Wagner. Götterdämmerung é a tradução alemã para a palavra em nórdico antigo Ragnarök, que em português seria o Crepúsculo dos Deuses. Para se ter uma idéia da grandiosidade desse espetáculo, está em Götterdammerung a cena mais difícil de se representar da história do teatro (última cena do último ato, falarei sobre ela). A música também só pode ser cantada por um virtuose vocal. Götterdämmerung continua a história de Siegfried, filho de Siegmund, e ainda mais que Die Walkürie e Siegfried, mudanças drásticas no mito ocorrem, inclusive a própria interpretação do Crepúsculo dos Deuses. Já conhecia a música, e só agora estou lendo o libretto, entretanto, não tenho mais nenhuma versão musical de Götterdammerung, o que me obriga a puxar da memória. Vamos ver o quão bem eu me saio.

Além das inovações formais já iniciadas por Wagner à ópera, temos em Götterdämmerung um prelúdio antes da 1ª cena. O prelúdio pode ser dividído em duas partes, a primeira onde as Normas tecem o fio do destino (e por descuido alguns se rompem) enquanto cantam, até desaparecerem. O canto das normas (em Alemão) é belíssimo, mas a poesia dessa parte é questionável, e é bela somente cantada. As normas contam em poucas linhas a história passada e a futura. A segunda parte do prólogo, após uma breve e bela Orchesterzwischenspiel, mostra Siegfried e Brünnhilde saindo de uma gruta (depois de se amarem), onde a ex-valkíria afirma que Siegfried deve prosseguir em sua jornada, e Siegfried como prova de amor lhe dá o anel que tomou de Fafner e ela lhe dá o seu cavalo e seu escudo de valkíria. Apesar de literariamente desnecessário (se a ópera começar a partir da primeira cena, não perderíamos nada), podemos ver no prólogo que o Siegfried de Götterdämmerung não é o mesmo Siegfried de Siegfried. O personagem está mais humano e heróico (até na música), e não é mais aquele estereótipo. Dá uma prova de amor na mesma medida em que recebe, e sua fala é autera e abobalhada.

A música em Götterdämmerung é muito mais sóbria que nas outras óperas da saga, e não é exagerada como Die Walkürie, mas ainda possui peso e expressividade. A primeira cena se passa no palácio de Gunther, onde Hagen (meio-irmão do rei Gunther) e Gutrune (irmã) estão presentes. Gunther pergunta sobre sua popularidade, e Hagen (depois de fazer mistério), afirma que sua popularidade não é satisfatória porque ambos (Gunther e Gutrune) não são casados. Gunther pergunta quem ele indicaria como esposa, e Hagen indica Brünnhilde (como é chato escrever esses nomes), e explica a situação: apenas Siegfried pode trazer ao rei, e apenas se Gutrune fizer o herói se apaixonar. Hagen explica o plano: dar uma poção a Siegfried para que este se esqueça de seu amor passado, assim ele se casará com Gutrune e Brünnhilde se casará com Siegfried. Como no cinema e no teatro, na ópera também a conveni~encia das situações fala mais alto: Siegfried chega justamente quando estão discutindo como encontrá-lo. Hagen o convida para entrar, e fecha-se a cena.

A cena dois mostra como Siegfried e Gunther se conhecem pessoalmente. Siegfried desconhecia o poder do Tarnhelm, que Hagen esplica seu poder. Gutrune dá a bebida do esquecimento a Siegfried, e ele esquece totalmente de Brünnhild, e promete tirá-la das chamas e entregar a Gunther em troca da mão de Gutrune. Siegfried foi enganado em sua ingenuidade (justificável, devido sua criação), e essa cena é muito coerente e bem feita, mas, há um ponto que foi esquecido: CADÊ A CLARIVIDÊNCIA DE SIEGFRIED??? O dragão lhe concedeu a clarividência em Siegfried, e aparentemente não foi capaz de usá-la agora... esquece, sem poção não há história, então... De volta aonde está Brünnhilde (3ª cena), a valkíria Waltraute chega, narrando a Brünnhilde a decadência do Walhalla. Waltraute tenta convencer a irmã de devolver o anel ao Reno (lembrando também da maldição de Alberich), o que Brünnhilde recusa-se a fazer:
Ha! Weisst du, was er mir ist?        /   Ah, você conhece o que ele [o anel] a mim representa?
Wie kannst du's fassen,                  /   Como podes compreender,
fühllose Maid! -                             /   garota insensível! -
Mehr als Walhalls Wonne,             /   Mais que o etéreo Walhalla,
mehr als der Ewigen Ruhm             /   mais que toda a glória divina
ist mir der Ring:                              /   é para mim este anel:
ein Blick auf sein helles Gold,         /   um olhar, à sua áurea matéria
ein Blitz aus dem hehren Glanz -     /   um brilhar, de sua luz majestosa -
gilt mir werter                                /   vale mais à mim
als aller Götter                               /   que a eterna alegria
ewig währendes Glück!                  /  de todos os deuses!
Denn selig aus ihm                         /   Porque nele brilha   
leuchtet mir Siegfrieds Liebe:          /  O amor de Siegfried como benção:
Siegfrieds Liebe!                            /  O amor de Siegfried!
- O liess' sich die Wonne dir sagen!/  Oh! Se eu pudesse dizer-lhe o que é prazer!
Sie - wahrt mir der Reif.                 /  É o que esse anel concede a mim.
           (Libretto em alemão, tradução livre por Raphael Soares a partir do inglês)
Após esse discurso, Waltraute vai embora triste, e Siegfried surge (disfarçado de Gunther devido o Tarnhelm). Siegfried subjulga Brünnhild para levá-la (como Gunther), mas ela reconhece sua voz (uma magnífica performance vocal, entre Tenor e Barítono), e ao final ele fala em sua voz normal, afirmando que ele e Gunther são irmãos de sangue.

A primeira cena do segundo ato é uma das mais sinistras e controversas. Hagen está na corte como guarda (adormecido) e Alberich aparece (ou não). Nessa cena há o diálogo entre Hagen e Alberich (filho e pai). Muito se infere desse diálogo, entre elas que Alberich não está materialmente, mas sim nos sonhos, e é uma projeção do próprio Hagen. Pode-se inferir também uma conecção do real e do onírico. A música é sombria, e o diálogo impressionante. Vale a pena conferir.

Na segunda cena do segundo ato Siegfried chega, afirmando a Hagen que tudo saíra como o planejado, e se coloca a disposição para organizar os dois casamentos. Temos uma melhor descrição de Hagen, que aparece esnobe e irônico. Uma pena que Wagner não é um mestre da Ironia. Na cena terceira temos mais Hagen, onde ele brinca com os soldados dando-lhes as boas novas, o que os soldados se espantam, pois, Hagen é carrancudo. Hagen aparece nesse ato múltiplo, mas coerente, podemos inferir algumas coisas sobre suas atitudes. A terceira cena é uma confusão, causada por Brünnhilde, e onde novamente Hagen se destaca. Siegfried defende-se e Brünnhilde o acusa, causando uma confusão geral onde ninguém (exceto o leitor/ouvinte) entende nada. Na última cena do segundo ato, Hagen se oferece em amizade à Brünnhilde, e junto com Gunther tenta compreender a confusão da outra cena. Hagen incita a pena capital ao "traidor" Siegfried, enquanto Gunther como sempre indeciso e manipuladíssimo. Hagen pergunta a Brünnhilde se e como Siegfried pode ser morto, e ela o informa que ele é um herói poderoso e não pode ser vencido em combate, mas pode ser atingido pelas costas. A explicação aqui para a ivulnerabilidade de Siegfried não é o sangue de dragão do Nibelungenlied, mas as artes de Brünnhilde que lhe protegem dos ferimentos. Como Siegfried jamais daria as costas em fuga para um inimigo, ela não o protegeu nas costas.
BRÜNNHILDE
O Undank, schändlichster Lohn!              /   Ó ingratidão, recompensa mais brutal!
Nicht eine Kunst                                      /   Nenhuma arte há
war mir bekannt,                                      /   de meu conhecimento,
die zum Heil nicht half seinem Leib'!          /   que não tenha lhe segurado a integridade corporal!
Unwissend zähmt' ihn                               /    Sem que soubesse, o envolvi
mein Zauberspiel, -                                   /   em minha mágica,
das ihn vor Wunden nun gewahrt.             /    que agora o protege dos ferimentos.

HAGEN
So kann keine Wehr ihm schaden?            /   Não há arma que o machuque?

BRÜNNHILDE
Im Kampfe nicht - ; doch -                       /   Em batalha não; mas...
träfst du im Rücken ihn....                         /   Caso acerte-o no dorso....
Niemals - das wusst ich -                         /    Jamais, sei disso,
wich' er dem Feind,                                 /     ele nunca permitiria,
nie reicht' er fliehend ihm den Rücken:      /     jamais ele daria as costas ou fugiria ao inimigo:
an ihm drum spart' ich den Segen.            /     Por isso dispensei em meus feitiços
    (Libretto em alemão, tradução livre por Raphael Soares a partir do inglês)
 A ultima cena do terceiro ato termina com Hagen convencendo Gunther a aceitar a morte de Siegfried.

No terceiro ato, Siegfried se perde de seu grupo de caça (que incluia Gunther e Hagen), e depara-se com as ninfas do Reno. Elas lhe contam a história da maldição, e afirmam que Siegfried será liquidado  assim como Fasolt, Fafner e todos que porem as mãos no anel. Siegfried não se importa. Na segunda cena Hagen dá uma bebida a Siegfried (com poder inverso da outra), que lembra e conta sua história, Hagen pergunta-lhe se pode compreender uma ave que está a sua frente, e Siegfried olha-a. Nesse momento Hagen golpeia covardemente Siegfried pelas costas. Siegfried canta uma música à Brünnhild enquanto ainda estava agonizando, e depois morre. Segue o cortejo fúnebre. Nessa cena aparecem duas das melhores músicas da ópera: a Canção de Siegfried e a Marcha Fúnebre de Siegfried.
A terceira e última cena do ato é quando levam Siegfried à um rochedo, e Gunther e Hagen disputam pelo anel. Há muita confusão e ação, nesta que é a cena mais difícil da história do teatro. O importante aqui é o Discurso de Brünnhilde, onde muito se pode interpretar sobre toda a obra e a filosofia wagneriana. A parte dramática desta cena é muito intensa, podemos citar: Br¨nnhilde atira-se com o cavalo às chamas, Hagen é afogado e subjulgado por duas valkírias (Woglinde e Wellgunde), o palácio inteiro desmorona, e quando os deuses se reunem em assembléia todo o cenário entra em chamas, quando cai o pano e encerra a obra. Aqui a Imolação dos Deuses é uma bela parte orquestral, e o Discurso de Brünnhilde é bastante poético, e não ouso traduzi-lo (muito menos em tradução de tradução como tenho feito).

Assim termino todo o ciclo do anel, mas antes algumas considerações. Götterdämmerung é musicalmente genial, embora seja narrativamente fraco (comparado à Die Walkürie e Das Rheingold). Apesar de seus defeitos, é dentre todas as óperas do ciclo a mais dramática e mais virtuosística. Götterdämmerung ganha também no psicológico dos personagens. Temos uma Brünnhilde humana, um Hagen dual, um Gunther fraco, um Siegfried com seus defeitos e não mais estereotipado como na ópera anterior. Principalmente Hagen me fascina, porém, Brünnhilde também tem seus pontos fortes. Wagner é um gênio fora do comum, e essa obra causou uma influência absurda (positiva e negativa) em seu país, apesar de, como pessoa, Wagner ser pouco exemplat. O Anel dos Nibelungos de Wagner é uma obra ímpar, e Götterdämmerung é o ápice do Drama Psicológico.

Esse livro é bônus do DL, e foi feito em decorrência do tema de Março. Clique aqui para ver a página de Março

quarta-feira, 23 de março de 2011

O Juiz e seu Carrasco - Friedrich Dürrenmatt

No início do mês falei que março seria um mês Alemão, e agora vos apresento Dürrenmatt (que não é alemão e sim suíço, mas de língua alemã). Para quem não conhece, Friedrich Dürrenmatt é um escritor (principalmente de teatro) contemporâneo bastante famoso nos países germanófonos, mas aqui no Brasil bem pouco lido. Ao que me consta, em língua portugesa temos apenas O Juiz e Seu Carrasco e 3 contos (A Pane, O Túnel e O Cão) reunidos em um lívro e em duas antologias, além de um texto teórico sobre o teatro (Problemas do Teatro) que não nos interessa no presente momento.

O Juiz e seu Carrasco é uma novela policial, uma das especialidades do autor, que conta a história de um polícial que foi assassinado sob circunstâncias misteriosas. O comissário Bärlach decide investigar essa morte, e devido à pressões internas, acaba tendo de aceitar por companheiro Tschanz, policial criminalisticamente exemplar. Somam-se aos personagens a família de Schmied, o policial Clenin (que descobre o corpo de Schmied) e outras figuras. Além disso, cada personagem possui uma história obscura, principalmente Bärlach, que possui uma competição antiga, que se resolve nesse livro.

O livro é profundo no psicológico das personagens e complexo em suas ligações. Há no livro a presença de vários conflitos, entre eles a luta contra a morte (Bärlach está muito doente, quase morto), contra as intrigas policiais, contra o passado, contra a dicotomia justiça-crime.

Vou ser bastante franco, como é de meu feitiu. Minha primeira impressão do livro não foi boa, a história parecia banal, os personagens me pareceram (à primeira vista) artificiais e a linguagem sem nada de especial. Entretanto, uma coisa é fato, nunca um romance policial havia me surpreendido em seu desfecho (exceto os dois primeiros que li, a saber: As Aventuras de Sherlock Holms e Um Estudo em Vermelho de Doyle). Nem Simenon, nem Piglia, nem Doyle, nem Greene, nem Dan Brown nem nenhum outro escritor ou história policial me foram surpreendentes nesses 5 anos e meio de leitura. Dan Brown nos dá em seus livros (exceto Ponto de Impacto, que não posso julgar pois não li) o desfecho e o criminoso no meio do livro; em Fortaleza Digital sabemos desde o 10º capítulo quem manda o assassino e porque assim como é óbvio que a senha do vírus é 3 (a partir da dica absurda dada), e não consigo entender como os personagens são idiotas a ponto de não perceberem isso. Em O Terceiro Homem de Greene, podemos deduzir que lime está vivo desde a descoberta de um "terceiro homem". O mesmo acontece em Simenon, Doyle, Píglia e diversos autores nacionais.

Não me entendam mal, sou fã de romances policiais e criminais, eles só nunca conseguem me surpreender. O diferencial não está no desfecho surpreendente, mas na criatividade da história (e seus pormenores) e na linguagem. Em O Juiz e seu Carrasco os personagens e as intrigas são bem interessantes, mas o que me chocou foi o fato de não ter conseguido predizer os 2 ultimos capítulos do livro. Durante todo o desenrolar da história, fui chegando a conclusões cada vez mais concretas, e das duas possibilidades que cogitei uma vi concretizada no 19º capítulo... para no fim descobrir que estava errado. O ponto forte do escritor é não "inocentar" ou "descentralizar" o desfecho da narrativa, mas atravez da linguagem elaborada nos focalizar em partes específicas da narrativa, e assim as provas (que estão para um desfecho) são vistas sob outro ângulo.

Se o forte de uma narrativa policial deve ser a surpresa, essa é a melhor que já li até hoje. Mas (sempre tem um mas), ainda há uma coisa que falta nesse livro, pois não consegui gostar tanto dele ainda assim. A surpresa compensou minha leitura quase forçada, mas não a anulou. Se me perguntarem hoje para escolher entre O Juiz e seu Carrasco de Friedrich Dürrenmatt e O Terceiro Homem de Grahan Greene, optarei por ambos. O primeiro ganha pela surpresa, a profundidade psicológica e os conflitos, o segundo pela criatividade da história, por como ela é desenrolada e o carisma dos personagens. Ambas as histórias são sombrias e cômicas ao mesmo tempo.

Avaliação final: Não é perda de tempo ler esse livro, pois é uma esperiência nova, além de que o livro é barato (8 R$) e curto (112pgs em formaton de bolso). A edição da L&PM como sempre, a melhor da categoria.

Nota do Elaphar: 8,6

Edição Lida:
DÜRRENMATT, Friedrich. O Juiz e seu Carrasco. Trad: Kurt Jahn. Porto Alegre: L&PM, 2008, 112p. (L&PM Pocket Plus, 681)

terça-feira, 15 de março de 2011

O Anel dos Nibelungos (Siegfried) - Richard Wagner

Me propus realizar a homérica missão de resenhar todo o ciclo do Anel dos Nibelungos de Richard Wagner, e já estou no 3º, a ópera Siegfried. A obra está sob a forma de Libretto, que em italiano quer dizer brochura (que segundo a ABNT, se aplica às publicações com menos de 60 páginas, desconsiderando capas), mas, apesar do pequeno tamanho, a obra está em verso e possui uma riquesa lírico-narrativa impressionante. É em Siegfried que aparece um dos personagens mais representativos da mitologia teutônica, que está massificadamente presente na cultura popular, e que é o herói principal da série. O Siegfried de Wagner, diferente de outras versões, é filho de Siegmund com sua irmã (os dois são volsungas, ou Wälsung, tanto faz), o que faz de Siegfried neto de Wotan duas vezes (por parte de pai e de mãe). Entre Die Walkürie e Siegfried, Sieglinde vai até próximo da caverna de Fafner e encontra o nibelungo Mime (irmão de Alberich), que cria Siegfried até seu crescimento. Se vocês já assistiram o filme O Anel dos Nibelungos, esqueça-o, pois, Mime (pai adotivo de Siegfried) não é bom. Deseja que Siegfried pegue o anel e planeja matá-lo. Mas, vamos para a história.

Primeira cena do primeiro ato. Mime está com raiva pois está preparando uma espada para Siegfried, mas sabe que o jovem quebrará a arma assim que estiver pronta. O nibelungo sonha obter o Anel e o Tarnhelm (helmo que transforma), e para isso precisa de Siegfried. O jovem chega com um URSO encoleirado, e brinca com o urso como se este fosse um Poodle. Depois ele quebra a espada pronta como se fosse uma vareta de bambu, o que deixa Mime puto de raiva. Mime conta a história de Siegfried (pois o jovem o ameaçou), mas sem lhe contar a história do pai. Mime mostra os fragmentos da escali... ops, digo Notung e Siegfried fica animado, pedindo para que Mime reconstrua a espada.

Duas coisas podemos perceber a partir da leitura e audição da primeira cena. A primeira é que Siegfried não é tão monumental (músicalmente) quanto Die Walkürie, e que a dramatização é mais importante do que as narrativas e lirismo. É a obra mais dramática das quatro óperas, e ao mesmo tempo a mais épica. A segunda é que Siegfried é o heroi com mais testosterona da história da literatura (mais até do que Lance e Bill [Contra]). Não é qualquer um que brinca com um ursinho de estimação e quebra uma espada de metal feita por um nibelungo como se fosse de plástico... e olha que só estamos começando. Siegfried poderia ser até capa dos CDs do Manowar.

Na segunda cena, Wotan aparece e provoca Mime, dizendo ao final que apenas quem não conhece o medo poderá forjar a espada Notung (,,Nur wer das Fürchten/nie erfuhr,/schmiedet Notung neu.”), e assim passa para a 3ª cena, onde entra Siegfried e pede a espada, que Mime não conseguiu forjar. Como Siegfried não conhece o medo, ele mesmo forja a espada e para testá-la parte uma bigorna meio (Gott!!! Quanta testosterona!!!).

No segundo ato, Alberich espreita Fafner (agora transformado em dragão), quando surge Wotan e avisa a Fafner que vem alguem matá-lo. Fafner não se importa e na segunda cena Siegfried aparece e mata o dragão, que conta sua história. Após matar o dragão, Siegfried bebe o seu sangue e ganha o poder clarividente de falar com as aves (mais uma diferença da versão wagneriana e do Nibelungenlied). Siegfried então descobre o que Mime planejava e mata-o, conversando em seguida com uma ave que lhe fala sobre Brünnhilde. Siegfried se prepara para mais uma prova de bravura.

Na primeira cena do último ato, Wotan invoca a deusa da Terra (novamente aconselho a gravação do Karajan, pois, que voz para Erda...) e conversa com ela. Esse diálogo é muito legal de se ler, mas ele não cria mudanças significativas no enredo. Está aqui como dica. Em seguida (Segunda Cena), Siegfried encontra Wotan (que não saiu do lugar), e há uma discussão entre eles. Wotan afirma que já quebrou a Notung uma vez e pode fazê-lo novamente (Das Schwert, das du schwingst,/erschlug einst dieser Schaft:/noch einmal denn/zerspring es am ew’gen Speer!), mas Siegfried quebra a lança e Wotan recolhe os pedaços tranquilamente e desaparece. Os diálogos desta cena são bons, mas não gosto muito desse final...

E por fim, Siegfried encontra Brünnhilde, e não sabe o que fazer com ela (pois nunca viu uma mulher na vida). Perdoo o Siegfried, pois quando era mais novo, provavelmente não saberia o que fazer se uma Valkíria caísse nos meus braços (provavelmente a chamaria para jogar Super Mario ou Bomberman). Após o beijo, Brünnhilde acorda e pergunta quem é o heroi, que prontamente se identifica. Brünnhild conta que salvou a vida dele antes, e Siegfried cogita ser Brünnhild sua mãe, o que é logo desmentido. Brünnhild ainda faz-se de difícil por um tempinho, mas logo rende-se ao amor do guerreiro volsunga cheio de testosterona. Fim da ópera.

Para concluir, embora Siegfried seja musicalmente e liricamente mais fraco que Die Walkürie, possui uma parte inportante da história. Apesar disso, os detalhes da narrativa deixam a desejar, além dos personagens. Fafner, Brünnhild e Siegfried são muito vazios nessa ópera, e Fafner não é o mesmo de Das Rheingold nem Brünnhild é a mesma de Die Walkürie. O destaque absoluto vai para Wotan, que mostra-se diferente e interessante (até certo ponto cínico), mas em geral, faltou um trabalho psicológico maior nos personagens, diferente do que ocorre nas óperas anteriores. Brincadeiras a parte, o Siegfried de Siegfried é um estereótipo de super-guerreiro-bombado-vazio (supergepumptleerkrieger), que não me agradou, mas ainda tenho ótimas espectatívas para o Götterdammerung. Esse livro é bônus do DL, e foi feito em decorrência do tema de Março. Clique aqui para ver a página de Março.

sexta-feira, 11 de março de 2011

O Anel dos Nibelungos (Die Walkürie) - Richard Wagner

Quando planejei resenhar o ciclo de óperas de Wagner, imaginei que iam me atacar, mas aparentemente isso não aconteceu (ainda). Acho que antes de falar da mais impressionante obra dramático-literário-musical do romantismo alemão (a segunda parte do ciclo O Anel dos Nibelungos), devo prestar alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, a rigor, nenhuma das obras do ciclo (ou série, se preferir) do Anel dos Nibelungos é épica, lírica ou drama, ao mesmo tempo que é todas as 3. Por um lado, a obra foi escrita para ser encenada (Drama) e o narrador se apaga (Drama), por outra, a obra é feita em versos ao estilo épico (Épica) e a música assume o papel de narrar os acontecimentos, o que faz com que o narrador não se apague tanto como no drama, o que o aproxima do gênero épico. Apesar do desfecho trágico de algumas partes da obra (como o fraticídio de Fafner, a morte de Siegmund ou a Imolação dos Deuses), outras representam conquistas heróicas (como a vitória de Siegfried contra o Dragão). Das 3 características que disse em um post anterior, todas se encaixam perfeitamente nessa obra. Lembrem-se também que as primeiras obras épicas foram feitas para serem cantadas, e o maior épico medieval alemão (Nibelungenlied) leva o nome Canção (Lied) e conta a mesma história, de forma diferente.

Há outras questões a tratar, dentre elas, o fato de eu já conhecer de longa data a música e a história, entretanto, nunca havia lido o texto literário (sob a forma do Libretto). De qualquer modo, estou dentro da proposta do desafio, pois nunca havia lido o libretto. Isso me deixou um pouco decepcionado, pois a parte musical da obra é muito superior à literária (se um wagneriano ouvir isto estarei morto amanhã mesmo). E por fim, os librettos dessa obra são extremamente curtos, em contrapartida, são profundos e devem ser analisados e interpretados junto da música. Além do mais, os libretos estão em ALEMÃO (disponível gratuitamente aqui), mas há uma tradução em portugues aqui, que peca em poeticidade. Por isso, estou lendo a partir do inglês (está no meu celular) com consultas breves em alemão. Apesar do que as pessoas dizem, alemão não é tão difícil, e a prova está aqui.

Die Walkürie (As Valkírias) é o inicio da obra propriamente dito. Enquanto Das Rheingold introduz falando sobre a história do Anel, a maldição de Alberich entre outros pormenores, Die Walkürie foca-se na história dos Volsungas (Wälsung no original, filhos de Wotan disfarsado como Volsa [Wälse] ) e da Walkíria Brünnhilde. A obra se inicia com uma narração orquestral (Prelúdio), e dá-se o encontro entre Siegmund e Sieglinde, que são irmãos gêmeos (embora não saibam disso). Há na primeira cena um caso raro nas óperas wagnerianas, onde uma cena contém apenas dois personagens.

Na segunda cena aparece Hunding, que é esposo de Sieglinde e futuro corno. Há uma relação bastante amistosa antre Siegmund e Hunding, pelo menos à primeira vista. Siegmund conta sua história, e como veio parar lá, e Hunding percebe que Siegmund é seu inimigo. Há uma certa tensão no ar (isso pode ser percebido pela música). A narrativa de Siegmund é muito legal, apesar disso, Hunding o chama para um combate (pois são inimigos), mas, apesar de tudo, o deixa ficar a noite em sua casa, pois ofereceu sua hospitalidade, e não pode faltar com sua palavra. Vocês já leram uma piada sobre os tipos de cornos? Não lembro direito, então, se alguem souber o tipo de Hunding, postem nos comentários e ficarei grato.

A terceira cena do primeiro ato é simplesmente uma das melhores cenas que já vi em uma obra dramática, chegando bem próximo de muitas cenas shakesperianas e quase se igualando à primeira cena do último ato desta mesma obra. Nela há o Monólogo de Siegmund (esqueci de avisar que o heroi não lembra o próprio nome), onde nosso heroi lembra da promessa de seu pai Volsa (Wotan, Wälse ou qualquer outro nome) de lhe dar uma espada quando estivesse precisando mais. Além do Monólogo de Siegmund, na terceira cena Siegmund lembra seu nome (e ganha uma identidade), toma sua irmã por esposa e pega a espada de seu pai, que estava cravada (algo similar ao rei Arthur não?). A terceira cena do primeiro ato de Die Walkürie é também uma das mais líricas, tanto no Monólogo de Siegmund quanto no poema de amor de Sieglinde (Du bist der Lenz,/nach dem ich verlangte/in frostigen Winters Frist./Dich grüßte mein Herz/mit heiligen Grau’n,/als dein Blick zuerst mir erblühte.[...]). É aqui que estão algumas das principais modificações wagnerianas para o mito, sendo que, em Wagner, Siegfried é filho desse relacionamento incestuoso.

Em seguida (no segundo ato) segue o verdadeiro drama. De forma bem rápida, no ato há o diálogo entre Wotan e Brünnhilde (ô nome difícil de escrever), onde o deus pai revela seus planos. Brünnhilde é a valkíria preferida de Wotan, e lhe dá a missão de matar Hunding (as valkírias são responsáveis por decidir os conflitos, escolhendo quais combatentes irão morrer e leva-los para o Walhalla). A esposa de Wotan (Fricka, deusa protetora dos matrimônios) aparece e impede os planos do deus pai, obrigando-o a proteger o casament de Hunding e Sieglinde e matar Siegmund. Contrariado, mas obediente, ordena então que Brünnhilde deve matar Siegmund. Esta cena não é tão poética quanto a anterior, mas musicalmente é muito mais poderosa e exagerada (característica de Wagner). Aparece aqui pela primeira vez o grito de guerra das valkírias (Hojotoho! Heiaha!). Em contrapartida, a parte narrativa desta cena é muito importante, o que me esclareceu alguns pontos que não conhecia da versão wagneriana do mito (valeu DL! Vi como é importante ler as obras aqui). Ainda no mesmo ato, acontece a fuga dos Volsungas, onde Sieglinde se considera um estorvo e possui a premonição de que Siegmund será dilacerado no combate, enquanto Siegmund está confiante pois possui a Notung (espada que ele pegou mais acima). Brünnhild aparece para Siegmund informando que ele a acompanhará em breve (isso é, morrerá), e Siegmund a convence de matar Hunding. Brünnhilde aceita, pois, acha que a vontade do pai é essa e está preparada para desobedecer ao pai para cumprir sua vontade.... entretanto, quando está preparada para agir (após a chegada de Hunding na quinta cena) aparece Wotan cheio de raiva quebrando a Notung e matando seu filho pessoalmente. Brünnhilde foge com Sieglinde (se seu filho na barriga) enquanto Hunding morre, após o despreso de Wotan. Esse ato é dinamicíssimo, acontecendo a maior parte da ação.

E vem o terceiro ato, que inicia-se com uma das músicas mais famosas da história, esta:

A Cavalgada das Valkírias é simplesmente sensacional, o que esplica sua popularidade. As valkírias estão carregando os herois mortos em combate, e procuram por Brünnhilde, que surge desesperada carregando Sieglinde. A voz de Brünnhilde é impressionante, e novamente recomendo a gravação de Herbert von Karajan da Filarmônica de Viena. As valkírias se recusam a ajudar Brünnhilde, pois não podem desobedecer Wotan, mas aceitam esconder Sieglinde (na verdade, Sieglinde foge sozinha, sob ordens de Brünnhilde para próximo de Fafner, onde Wotan não pisa. As valkírias aceitam apenas ficar de bico fechado) e até tentam proteger Brünnhilde quando Wotan chega, mas nada pode salvar a valkíria preferida. É interessante mencionar que Brünnhilde escolhe o nome do filho de Sieglinde (Siegfried).

Wotan chega irado e discute com Brünnhilde, que tenta dizer que fez a vontade do deus pai, agind contra as suas ordens. Como Wotan deve punir sua filha, pune-a transformando-a em mortal (soam gritos de protesto das outras valkírias) e com a famosa roda de fogo eterno que só pode ser atravessada pelo mais bravo dos homens (esse castigo surge de uma negociação de punição). Há por fim a despedida do deus Wotan, que em seguida ordena a Loge para que erga a barreira de chamas e termina com a dramática fala: "Wer meines Speeres/Spitze fürchtet,/durchschreite das Feuer nie!" [Quem o fio de minha lança teme, pelo fogo nunca passará].

A história segue então a partir da próxima ópera que chama-se Siegfied (e estou quase terminando de ler). Talvez demore um pouco para postar a ultima parte (Götterdammerung), pois tenho outras coisas para ler (muitas), mas provavelmente termino até o ultimo dia do mês. Esse livro é bônus do DL, e foi feito em decorrência do tema de Março. Clique aqui para ver a página de Março.

segunda-feira, 7 de março de 2011

O Anel dos Nibelungos (Das Rheingold) - Richard Wagner

"Deutschland, Deutschland über alles" (Primeiro verso do Deutschlandlied)!!! Não falei que esse mês seria alemão? E agora resenharei algumas das mais importantes obras poéticas, dramáticas e musicais da Alemanha, que são as 4 óperas do cíclo O Anel dos Nibelungos (Der Ring des Nibelungen), iniciando com o Das Rheingold (O Ouro do Reno), ópera introdutória em um único ato.

Richard Wagner é uma das figuras mais importantes do mundo da arte. Foi o primeiro "estudioso" da obra de Schopenhauer, e, na finalidade de criar a obra de arte suprema, criou uma música dramática e uma literatura musical. Sua biografia é um capítulo a parte: era anti-semita em igual nível que amigo de judeus influentes; criou uma monumental casa de ópera em Bayreuth chamada Bayreuth Festspielhaus; foi exilado; foi amigo de Nietzsche e posteriormente inimigo ferrenho deste. Muitos o consideram um ser humano despresível, entretanto, após Wagner não foi mais possível fazer música ou literatura como se Wagner não existisse. Bem ou mal, ou consideram a obra wagneriana como a coisa mais genial do mundo, ou como a mais abusiva. 8 ou 80.

A história do Anel dos Nibelungos precede Wagner, e é a história mais influente de toda a cultura Nórdica ou Teutônica. A lenda do anel conta a história de Sigurd (para os Nórdicos) ou Siegfried (para os Teutônicos). Essa lenda faz parte da cultura religiosa destes povos, e é representada por escrito em diversos manuscritos medievais, dentre eles as Pedras Rúnicas da Suécia, o Livro de Edda da Islândia e o Nibelungenlied da Alemanha. A presença da lenda na cultura popular e erudita é absurda, possuindo óperas (estas e uma outra chamada Sigurd), filmes, livros, poesias, entre outras influências, como em O Senhor dos Aneis, Cavaleiros do Zodíaco (há um personagem chamado Siegfried) e Walkyrie Profile (há o Anel dos Nibelungos no jogo). A versão wagneriana da lenda é uma obra tão singular (até mesmo em comparação com as outras versões da história) que é um original por si só. As modificações no mundo da música são muitas, desde a criação do leitmotiv, da unidade do texto (não mais divididos em recitais, árias, duetos e etc...), a massificação orquestral, o supervirtuosismo vocal entre outras, o que rendeu à essa ópera a alcunha de "absurdamente exagerada" (principalmente à segunda).

Literariamente (o que nos interessa mais nesse blog), Wagner começa sua ópera no roubo do ouro do reno pelo nibelungo Alberich, ouro esse que se dele for forjado um anel, o portador será dono do mundo (lembra o Um Anel não?). O ciclo fecha-se com a morte de Siegfried (que só aparece da terceira ópera até a quarta), diferente do Nibelungenlied, que inicia-se com Siegfried em seu melhor estado e termina muito depois de sua morte. O Das Rheingold encerra-se quando Fafner mata seu irmão e pega o anel. Das Rheingold é uma peça introdutória, que explica os acontecimentos anteriores os da narrativa em si, que têm como protagonistas Siegmund, Brünnhild e Siegfried. Os principais personagens de Das Rheingold são os deuses Wotan e Loge, o nibelungo Alberich e o gigante Fafner (posteriormente dragão).

Das Rheingold começa com um lento prelúdio representando o movimento do reno. Não é o melhor prelúdio de Wagner, mas não chega a ser ruim. Em seguida aparece a cena das ninfas brincando, chega Alberich, que dá em cima das ninfas. Elas ignoram o nibelungo feio, que fica com raiva, renega o amor e rouba o ouro do reno. Não há nada de muito especial nesta cena. A música é legal, mas não há toda a emoção vocal, e a cantada de Alberich é extremamente sem graça. O melhor Alberich (se vos interessar) na minha opinião é Neidlinger, que aparece na versão de Solti (regente). Lastimavelmente, o Alberich de Karajan (Kelemen) não é o forte dessa gravação, mas, ainda prefiro a gravação de Karajan sobre qualquer outra, e a justificativa vem a partir da segunda cena.

Segunda cena: uma Ochesterzwischenspiel bela, e em seguida aparece Wotan, o deus dos deuses, dormindo. Fricka surge e acorda-o. Essa cena tem uma expressividade dificilmente vista em qualquer outra obra teatral. Os gigantes estão construindo o palácio de Wotan, que como pagamento, cederá Freia para os gigantes que construiram o castelo (Fafner e Fasolt, este ultimo, apaixonado pela deusa). Wotan planeja enganar os gigantes com a ajuda de Loge. Entretanto, o plano não sai como deveria. Os gigantes tentam pegar Freia a força e quase se envolvem em uma briga pesada com os irmãos da moça (Donner e Froh). Loge aparece e hipocritamente afirma que não prometeu salvar Wotan desse impasse, mas sim PROCURAR um modo para isso, o que disse que não conseguiu (Mit höchster Sorge/rauf zu sinnen,/wie es zu lösen,/das - hab ich gelobt./Doch daß ich fände,/was nie sich fügt,/was nie gelingt,/wie ließ’ sich das wohl geloben?). Loge estava com a intenção de enganar os deuses, e ele, como semideus, não necessita da fruta dos deuses que apenas Freia pode colher. Loge passa a perna em todos, brilhantemente. Segue-se então uma eloquente discussão, e Wotan deve cumprir sua palavra. Nesta cena segue também a melhor parte (musicalmente falando) de toda a obra, que é o monólogo de Loge intitulado Immer ist Undank Loges Lohn! (A ingratidão sempre é a recompensa de Loge). Esse monólogo é irônico, mal intensionado, longo e profundo. O melhor Loge é, sem dúvida nenhuma, o de Karajan. A voz que Karajan encontra para Loge combina perfeitamente com o papel, e é de uma hipocrisia e ironia impressionante. Depois do Loge de Karajan, Erin Caves é a minha segunda performance favorita, embora não tenha a ambiguidade e expressividade sínica do outro Loge, sua voz é muito mais bela e poderosa, e sua interpretação de palco não deixa a desejar.



Depois desse monólogo, Fafner decide substituir o pagamento (Freia) por outro (o anel roubado por Alberich), levando Freia como garantia. Sem opção, Wotan decide pegar o anel e dar para os gigantes, e deve fazer o quanto antes, pois sem Freia a vida dos deuses vai ser muito difícil.

Chega a terceira cena. Alberich escravisou os outros nibelungos, inclusive seu irmão Mime (será uma figura importante em breve). Alberich está de posse de um elmo que lhe deixa invisível (lembra o Um Anel não?) e lhe permite transformar-se em outra coisa, com a finalidade de "vigiar sem ser vigiado" (preciso falar mais algo?). Orquestralmente, a terceira cena é demais. A história se passa dos deuses Wotan e Loge enganando, capturando e tomando o Anel de Alberich. Algumas partes são brilhantes como a da entrada dos deuses. A tomada do anel e a longa maldição de Alberich (antes de ser libertado) também é genial, musical, teatral e literariamente.O monólogo de Alberich (Die in linder Lüfte Wehn) pode ser baixado clicando aqui.

A terceira cena também é bem dramática. Wotan se recusa a dar o anel, mas entrega, e há uma briga entre os gigantes, onde Fafner mata seu irmão. Percebe-se aí a influência da maldição rogada por Alberich, que permeará toda a obra, tendo o seu ápice em Götterdämmerung.

O mito do Anel dos Nibelungos possui uma grande importância e influência em toda a cultura alemã e é muito forte na cultura ocidental geral. Wagner dá uma nova visão desse mito, e possui uma beleza singular. Em Das Rheingold ainda não aparecem as grandes modificações que virão surgir na versão wagneriana do mito, mas é muito importante de ser ouvido, assistido e/ou lido, pois introduz uma série de coisas importantes para a obra em geral, como a maldição de Alberich, a presença de Mime e a própria história e poder do anel do ouro do Reno. Por ser uma resenha especial, não haverá nota nem edição lida.

Esse livro é bônus do DL, e foi feito em decorrência do tema de Março. Clique aqui para ver a página de Março.

domingo, 6 de março de 2011

A Morte em Veneza - Thomas Mann

Demorei para postar essa resenha por apenas um motivo: não queria ser o primeiro do DL a postar... Acho que já falei o suficiente de Thomas Mann no post anterior, então, acho que posso me ater ao livro somente.

Morte em Veneza é considerada uma das obras primas de Mann, e alguns consideram o melhor livro escrito em alemão. É fácil dizer o motivo: o livro é impressionante. Mann descreve as emoções e sentimentos dos personagens de uma forma única. A história do livro, apesar de aparentemente simples, revela-se sublime. Há no livro uma infinidade de detalhes, entretanto, nenhum deles pode ser retirado da narrativa. Tudo na obra é essencial.

O livro conta a história do artista Gustav Aschenbach (ou Von Aschenbach), que decide tirar férias em Veneza, onde encontra um jovem polonês (Tadzio, diminutivo de Tadeus) belo, por quem se apaixona. Ao final do livro (como o próprio nome sugere), Aschenbach encontra sua morte. A Morte em Veneza é, sobretudo, um protesto em favor da beleza, do amor à beleza. Thomas Mann faz em seu livro, assim como muitos escritores de língua alemã (como Rilke, Goethe, Schiller e Hölderlin), um tratado sobre a filosofia da arte, assim como sobre a natureza do belo.

A caracteristica mais marcante do livro é a sinestesia. Os sentidos estão todos jogados no livro, correspondem, brigam, matizam-se. A obra, alem de textual, é extremamente visual, nos permitindo VER o que acontece de forma singular, além de ser uma obra muito musical, nos fazendo OUVIR o que se passa, as vozes, o movimento do mar. Os sabores e os cheiros também são fortíssimos na obra, mas não superam a musicalidade e visualidade.
O sol queimava-lhe o rosto e as mãos, o ar salino fortalecia-lhe o sentimento; e, assim como antes aplicava de imediato numa obra todo o descanso que lhe proporcionava o sono, a alimentação ou a natureza, assim deixou agora tudo o que o sol, a ociosidade e o ar marinho lhe davam em cotidiano fortalecimento consumir-se, magnânimo e desgovernado, em êxtase e sentimento. [...] O maravilhoso acontecimento [o primeiro clarão do dia] enchia de veneração sua alma enlevada pelo sono. Ainda o céu, a terra e o mar estavam envolvidos na fantástica, vítrea palidez da madrugada; ainda pairava uma estrela apagada no espaço. Mas vinha um sopro, uma notícia alada de residências inatingíveis, de que Eros se erguia do lado de seu esposo, e então aparecia aquele primeiro doce enrubrescer da faixa mais distante do céu e do mar, anunciando o sensualizar da criação. (p.139)
Além da sinestesia da obra, A Morte em Veneza é cheia de pequenos detalhes e reflexões que são importantíssimas, que misteriosamente criam um livro complexo e denso, porém, divertido de se ler. É importante notar na obra a relevância que o ambiente (cenário) tem para o sentido do texto. Há também no livro uma incessante busca pela descoberta da auto-identidade do heroi, que é conflitante. Por um lado, o heroi é moral, por outro ele ama o que é belo, que aparece na figura de um garoto polonês (lembre-se que isso é Homossexualidade e Pedofilia, que eram inadmissíveis na decada de 20).

Muito interessante como o desfecho da obra é formulado. A narrativa termina quando Aschenbach e Tadzio estão prestes a se separar. A morte é apenas um prolongamento de um único período (o último do livro): "E, ainda no mesmo dia, um mundo respeitosamente comovido recebeu a notícia de sua morte". A morte surge em A Morte em Veneza como resolução de todos os conflitos internos e obstáculos de sua pequena epopeia, como a salvação para o dilema do amor ao belo e da separação. Lembra-me Aquiles, para o qual a morte significou a imortalidade. Aschenbach morreu amando o belo, sendo um homem moral, e sem separar-se de seu afeto. É o fim de sua descoberta identitária e de tudo o que o afligia.

Por fim, segue uma passagem do livro, profunda em sua simplicidade, que gostei muito e desejo compartilhar.
A felicidade do literato é o pensamento que é todo sentimento; é o sentimento que consegue tornar-se todo pensamento. Um pensamento palpitante como este, um sentimento tão exato, pertencia e obedecia ao solitário, naquela ocasião: isto é, que a natureza estremece de prazer quando o espírito se curva em adoração perante a beleza. Repentinamente desejou escrever. Na verdade, Eros ama a ociosidade, assim dizem, e só é criado para isto. [...] O assunto lhe era familiar, lhe era experiência; seu desejo de deixá-lo acender-se na luz de sua palavra tornou-se irresistível. E, na verdade, seu anseio era trabalhar na presença de Tadzio, e, escrevendo, adotar a figura do menino como modelo, deixar seu estilo seguir as linhas deste corpo que lhe parecia divino, levar sua beleza para o espiritual, como outrora a águia carregara o pastor troiano para o éter. Nunca sentira mais doce o prazer da palavra, nunca soubera que Eros estava assim na palavra, como nas horas perigosas e deliciosas, durante as quais, sentado em frente à rude mesa sobre o toldo, ne presença de seu ídolo e a música de sua voz nos ouvidos, formava uma pequena dissertação, de acordo com a beleza de Tadzio - aquela página e meia de escolhida prosa, cuja integridade, nobreza e ondulante tensão de sentimento dentro em pouco exaltaria a admiração de muitos. Por certo é bom que o mundo só conheça as belas obras sem conhecer suas origens e condições de formação, pois o conhecimento das fontes que serviram de inspiração ao artista muitas vezes o desconcertaria, desalentaria e assim anularia os efeitos do que é excelente. Estranhas horas! Estranha fadiga enervante! Estranha comunicação criadora do espírito com um corpo! Quando Aschenbach guardou seu trabalho e deixou a praia, sentiu-se esgotado, desconcertado mesmo, como se a sua consciência lhe fizesse queixas depois de uma digressão. (p.137)
 Essa resenha faz parte do Desafio Literário. Para conferir a minha lista do desafio clique aqui. Para conferir a lista de Março Clique aqui. Atualmente, Morte em Veneza é publicado pela Nova Fronteira, e é de fácil acesso em livrarias. A edição da Abril só é encontrada em sebos.

Nota do Elaphar: 9,8

Edição Lida:
MANN, Thomas. Tônio Kroeger & A Morte em Veneza. Trad: Maria Deling. São Paulo: Abril Cultural, 1979, 170p

quarta-feira, 2 de março de 2011

Tônio Kroeger - Thomas Mann

Agora que vim perceber que esse é o primeiro livro de Literatura Alemã que posto no Blog , e não consigo compreender como nunca resenhei um alemão. Thomas Mann é um dos maiores escritores do séc XX. Filho de um alemão com uma brasileira, teve como irmão o também escritor Heinrich Mann. Ganhou o Prêmio Nobel e foi cassado durante o período nazista. Criou o maior livro que tenho em minha biblioteca (A Montanha Mágica), com 1000 páginas em papel pólem.

Tônio Kroeger, ao meu ver, tem um certo ar de autobiografia de Mann. Kroeger (ou Kröger) é um burguês que sofre por ser fora do comum (escreve versos); sua mãe e seu nome são estrangeiros (assim como Mann). Há também uma tendência homossexual na infância de Kroeger para com seu amigo Hans (lembrando que Mann possuia tendências homossexuais que odiava).

Tônio Kroeger é um livro que mostra os complicados conflitos do ser humano, de sua infância, adolescência e fase adulta. Também é um tratado sobre arte, pois, as reflexões de Kroeger sobre a arte e a vida são profundíssimas, e só perdem para as de Rainer Maria Rilke (em breve resenharei algo sobre esse escritor, pois esse mês é alemão... Gott schütze Deutschland). Os detalhes e estados de espírito são mais importantes do que os acontecimentos em Tônio Kroeger.

Tônio Kroeger é um livro simples, porém profundo, escrito com maestria e possui uma temática interessante e criativa. O livro me cativou muito devido minha grande afinidade com o melancólico personagem principal (acho que sou algo entre Kroeger de Mann e Meursault de Camus). O livro é curto e pode ser lido e relido em pouco tempo.

Nota do Elaphar: 9,2

Edição Lida:
MANN, Thomas. Tônio Kroeger & A Morte em Veneza. Trad: Maria Deling. São Paulo: Abril Cultural, 1979, 170p
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