quarta-feira, 16 de maio de 2012

Lamentações de Jeremias - Anônimo

Mais um livro lido da Bíblia Cristã, dessa vez para o desafio Literário, em sequência à leitura do Livro de Jeremias, lido em Fevereiro. Esse é um dos menores livros da primeira parte, e não é própriamente histórico, mas construído em cima de um acontecimento histórico e catastrófico para o povo hebreu, que foi a destruição da nação de Israel e exílio na Babilônia. Já é um hábito, mas só para alertar vai o tão repetido aviso:
Alerta importante: Eu estou lendo os Lamentações de Jeremias como um texto LITERÁRIO, não RELIGIOSO. Qualquer personagem, acontecimentos e até mesmo Deus estão sendo vistos aqui como PERSONAGENS e TRAMAS literários puramente. Não está em cheque a religião, mas somente a literatura.
Não consigo compreender como nunca havia lido esse texto. É um dos menores da Bíblia, situado entre os livros proféticos, no entanto ficaria mais bem situado entre os poéticos, assim como os Salmos de Salomão. Sem dúvidas é o livro mais poético e mais assustador que já li dessa compilação.

O livro começa falando sobre a destruição da terra de Judá, assim como vai narrando com poeticidade e crueldade incomum toda a desolação, material e espiritual, do povo. O assassinato dos reis, dos velhos; a expulsão, o exílio babilônico, a escravidão e fome do povo, entre outras catástrofes, narradas de modo quase apocalíptico. A narração, a todo o momento, vem coberta de uma crítica agressiva contra Deus, que causou toda essa destruição, escravização e violência.

O livro é profundamente ambíguo. Por um lado o povo compreende sua culpa, mas critica Deus pela punição e por não lhes dar ouvidos. O povo compreende a piedade e miséricordia divina, mas Deus também possui ira tão infinita quanto misericórdia. O próprio conceito de misericórdia vem como ira impiedosa contra os inimigos.
Quem poderá falar e fazer acontecer, se o Senhor não o tiver decretado?
Não é da boca do Altíssimo que vêm tanto as desgraças como as bênçãos?
Como pode um homem reclamar quando é punido por seus pecados?
Examinemos e submetamos à prova os nossos caminhos, e depois voltemos ao Senhor.
Levantemos o coração e as mãos para Deus, que está nos céus, e digamos:
"Pecamos e nos rebelamos, e tu não nos perdoaste.
Tu te cobriste de ira e nos perseguiste, massacraste-nos sem piedade.
Tu te escondeste atrás de uma nuvem para que nenhuma oração chegasse a ti.
Tu nos tornaste escória e refugo entre as nações.
Todos os nossos inimigos escancaram a boca contra nós.
Sofremos terror e ciladas, ruína e destruição".
Lamentações 3:37-47 (Nova Versão Internacional)
 Ou então:
Olha para eles! Sentados ou em pé, zombam de mim com as suas canções.
Dá-lhes o que merecem, Senhor, conforme o que as suas mãos têm feito.
Coloca um véu sobre os seus corações e esteja a tua maldição sobre eles.
Persegue-os com fúria e elimina-os de debaixo dos teus céus, ó Senhor.
Lamentações 3:63-66 (Nova Versão Internacional)
 É um dos mais contundentes livros sobre a ira de Deus e a ira contra Deus. Muitas de suas passagens são assustadoramente belas, o que é muito comum na escrita de textos em tempos difíceis, como o Salmo 137, as poesias de Paul Celan ou os textos do nosso período ditatorial.

Há no mínimo algumas coisas interessantes que mostram, entre outras coisas, a diferença radical entre o pensamento judaico e o cristão. Pode-se perceber por exemplo que não se culpava algum Diabo todo o mal do mundo, principalmente porque aos judeus a ideia de Diabo era estranha, no entanto, todo o mal do mundo era causado pela ira divina. Deus continha todo o bem, tal qual continha todo o mal. O mal era muitas vezes até necessário, não só como punição, mas como disciplina. Percebe-se nas Lamentações essa dualidade do mal.

As lamentações diferem significativamente de capítulo a capítulo, e como as traduções da bíblia, tradicionalmente, buscam conservar prioritariamente o conteúdo "conceitual" e pouco buscam traduzir o estilo (só sei de um caso diferente, que é as transcriações bíblicas de Haroldo de Campos), pouco podemos prever do belíssimo estilo original que esses poemas contém. Uma verdadeira pena.

Sem dúvida é um exelente livro, que deveria ser lido por todos, independente da crença religiosa ou arreligiosa. É fácil de ser encontrado, pois se encontra em qualquer Bíblia Cristã ou Tanakh judaico. O número de traduções é tamanha, e as diferenças entre elas também.

domingo, 15 de abril de 2012

Clepsydra - Camilo Pessanha

Para o DL desse mês eu pretendia ler um autor de língua portuguêsa das colonias orientais (particularmente Macau e Timor-Leste), mas apesar da língua, simplesmente não consigo achar nenhum livro de escritores como José Silveira Machado e Venceslau de Morais (de Macau), ou Fernando Sylvan e Luís Cardoso de Noronha (do Timor-Leste). É incrível a incomunicabilidade entre os países lusófonos, apesar de falarem a mesma língua... é mais fácil ter acesso a um livro de um escritor sueco que de um escritor de Macau.

Acho que quase todos conhecem Camilo Pessanha, que é um dos mais representativos escritores de língua portuguesa. Era leitura obrigatória na época que fiz vestibular, mas como nunca leio o que sou obrigado a ler deixei de mão. Ainda bem, pois ele é um escritor incrível.

Nasceu em Portugal, mas trabalhou e morreu em Macau, de onde escreveu a maior parte de seus poemas. Sua verdadeira inspiração também adquiriu em Macau: o ópio. Camilo Pessanha é um caso particularmente interessante, seu livro (Clepsydra) foi lançado enquanto o poeta ainda vivia, e o título foi por ele escolhido, mas nunca chegou a ler seu livro e nem ao menos sabia que poesias havia nele. Foi organizado por outra pessoa, e como o poeta só escrevia drogado, nem sabia ao menos o que escrevia. Como poeta da escola simbolista, é muito prório escrever drogado...

A morte e a alucinação são temas super recorrentes no livro, desde seu primeiro poema (Inscripção), que é um ótimo exemplo da poética do autor:
INSCRPÇÃO
Eu vi a luz em um paiz perdido.
A minha alma é languida e inerme.
Oh! Quem podesse deslisar sem ruido!
No chão sumir-se, como faz um verme…
O livro é dividido em duas partes: Sonetos e Poesias. Nos Sonetos, Camilo mostra-se um grande sonetista da língua, como se observa nesses dois sonetos:
Esvelta surge! Vem das aguas, nua,
Timonando uma concha alvinitente!
Os rins flexiveis e o seio fremente…
Morre-me a bocca por beijar a tua.

Sem vil pudôr! Do que ha que ter vergonha?
Eis-me formoso, môço e casto, forte.
Tão branco o peito!—para o expôr á Morte…
Mas que ora—a infame!—não se te anteponha.

A hydra torpe!… Que a estrangulo… Esmago-a
De encontro á rocha onde a cabeça te ha-de,
Com os cabellos escorrendo agua,

Ir inclinar-se, desmaiar de amor,
Sob o fervor da minha virgindade
E o meu pulso de jovem gladiador.
Quem polluiu, quem rasgou os meus lençoes de linho,
Onde esperei morrer,—meus tão castos lençoes?
Do meu jardim exiguo os altos girasoes
Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?

Quem quebrou (que furor cruel e simiêsco!)
A mesa de eu cear,—tabua tôsca de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
—Da minha vinha o vinho acidulado e fresco…

Ó minha pobre mãe!… Não te ergas mais da cova,
Olha a noite, olha o vento. Em ruina a casa nova…
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.

Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais.
Alma da minha mãe… Não andes mais á neve,
De noite a mendigar ás portas dos casaes.
E em poesias se encontram algumas das mais famosas do poeta, como as belíssimas "Arcadas do Violoncelo"...

Para quem gosta dos poetas simbolistas, Camilo Pessanha fica entre os melhores, talvez melhor até que nosso Cruz e Sousa (alguns vão considerar isso uma blasfêmia). Sua poeticidade é vigorosa, seu estilo é bem definido, sua poética é formalmente rigorosa, com alguns tour de force que nos parecem bastante naturais. Enfim, um dos maiores poetas da língua portuguesa.

Nota do Elaphar: 9,6
Edição Lida: PESSANHA, Camilo. Clepsydra. Projeto Gutenberg, disponível em: http://www.gutenberg.org/cache/epub/3498/pg3498.html.

domingo, 8 de abril de 2012

Antologia do Conto Húngaro (Org. e Trad. Paulo Rónai)

Mais uma leitura para o Desafio Literário de 2012, e o tema desse mês é Escritor Oriental. ... Alguns devem estar se perguntando porque diabos escolhi uma antologia de contos húngaros como literatura Oriental se, como todos devem saber, a Hungria fica no centro da Europa,. ao lado da Áustria e outros países como a Romênia e Ucrânia. Lógico que não perguntei para a equipe do DL a validade de minha escolha (descaso esse que me faz pensar que um dia ainda vou ser expulso do desafio...), e agora vou explicá-la.

Questões como orientalidade vs ocidentalidade são muito defíceis de por um ponto final. Na resenha passada mostrei um desses problemas, mais próprio da poesia, que é a multiplicidade de vozes resultante de um processo tradutório. Outros problemas podem aparecer, no caso de um artista nascer em um lugar mas ser artisticamente de outro (como o caso do húngaro Lizst, que nem ao menos sabia falar a língua de seu país, ou no caso da nossa Clarice Lispector, ou no caso do poeta português Carlos de Oliveira, nascido em Belém), ou ainda mais grave é do autor possuir a influência de dois lugares distintos (como Nabokov, Beckett, ou Eliot)  ou até mesmo pertencer ora a um lugar, oura a outro (como o Vieira português e o Vieira brasileiro, ou o Stephan Zweig austríaco e o Zweig brasileiro, ou o Rilke alemão e o Rilke francês... etc...). O que tenho percebudo nas resenhas desse desafio é uma série de escritores nascidos em países do extremo oriente (principalmente Japão), mas que pertenceram de fato (socielmente, espiritualmente, linguísticamente e, por quê não, literariamente) a outro país, geralmente de lingua inglesa. Nacionalidade envolve muito mais que lugar de nascimento, não fosse assim não teríamos escritores alemães e austríacos nascidos em Praga ou na Romênia ou escritores brasileiros nascidos na Ucrânia.

Agora, o que tem a Hungria de oriental? Tudo e nada! Para que a escolha possa ser compreendida, deve-se tomar algumas lições de história, genética e linguísticas, e como estou meio sem tempo, vou resumir ao máximo. Todos devem conhecer as histórias dos Hunos, que foram um povo oriental (da região que corresponde a China e Mongólia) que fez o maior estrago no ocidente na Era Romana. Os magiares vieram junto com os hunos, e se estabeleceram no lugar (alguns Húngaros acreditam que os magiares são descendentes dos próprios hunos). Portanto, o povo magiar é um povo geneticamente oriental, e a língua húngara, apesar do alfabeto latino, é, como se é de esperar, também uma língua oriental, da família de línguas uralicas. Se considerarmos a teoria linguística das línguas uralo-altaicas, o húngaro é do mesmo tronco das línguas turca, japonesa, coreana e das diferentes línguas da mongólia (daí o fato de que em húnguaro o sobrenome é dito antes do prenome, no caso do tradutor seria Rónai Pál ['honai 'pa:l], abrasileirado para Paulo Rónai). Portanto, os Húngaros são etnicamente e linguísticamente provenientes da Asia, porém deslocados ao centro europeu onde possuem um sério conflito identitário entre oriente e ocidente. Por um lado tentam preservar a sua cultura, por outro a aspiração ocidental. Conhecer a cultura, a história e a literatura da Hungria é conhecer o cerne do problema Ocidente/Oriente.

E convenhamos, a história da Hungria é uma das mais poéticas do mundo: povo oriental vivendo em meio a uma cultura estranha, cristanizada à força, esmagada politicamente pela Áustria, posteriormente pela Alemanha e supostamente libertada pela URSS, o que fez uma série de chagas nesse povo. Diga-se de passagem, alguns dos melhores contos desse livro relatam direta ou indiretamente o conflito identitário entre ocidente e oriente, ou os conflitos políticos e incoerência social.

O número de contos nesse livro é bem grande (30), tanto quanto as variedades de temática e estilo, o que torna muito difícil falar sobre todos eles. Ainda assim vou tentar ao menos escrever uma linha sobre cada conto. Os autores estão em ordem cronológica de nascimento, e é curioso que os últimos escritores morreram praticamente todos no mesmo período (1944-1945), no final da ocupação nazista.


O primeiro escritor é um representante do romantismo literário, e seu conto (Divertimento Forçado) é interessante por mostrar a pretenção da nobreza húngara ao ocidentalismo, já que o barão (personagem principal) mistura locuções francesas e abusa de galicismos no seu discuraso, e apesar disso, acaba entrando em contato com um ambiênte completamente húngaro, diferentemente do ambiente nobre que era mais propriamente parisiense ou vienense. Provavelmente  o autor não tinha em mente esse conflito ocidente/oriente como ponto importante da sua obra, diferente de Ady Endre, que é bem posterior, que em seu conto intitulado Chabachef, O assassino relata um homem que é dois, um Ocidental parisiense e um Oriental tradicional, sendo que um desses homens faz coisas que o outro jamais sonharia; é uma narrativa que todos deveriam ler.

Os dois contos de Mikszáth Kálmán são de ordem cômica e irônica, mas demonstram um grande conhecimento do interior dos seres humanos. O primeiro conto é uma resposta à teoria literária (não sei por que quase todo escritor odeia os críticos literários), enquanto o segundo  é uma divertida história tragicômica de um médico tentando convencer um paciente a amputar seu braço para sobreviver; pode parecer frívolo, mas a narrativa é muito divertida, profunda e bem construída. Gárdonyi Géza aparece na antologia com dois contos bastante diferentes, um mais mítico-alegórico, o outrocom uma carga de significado maior, e ambos bem diferentes, aparentemente, do que seria o estilo normal do escritor em seus romances históricos O Homem Invisível e Estrelas de Eger. Szomory Desö é talvez o mais ocidental da coletânea, mas não o único, e é um tanto tagarela; seu conto definitivamente não me cativou.

Heltai Jenö é um escritor alegre e também um tanto sombrio, que viveu muitos anos. Apesar dos dois contos dele serem bons (particularmente o A Morte e o Médico), não chega a ser um escritor genial, além de sua personalidade ser fraca; é muito francês, e infelismente, inferior à muitos franceses também. Ady Endre é dos maiores escritores húngaros, e seu conto, como já foi dito, merece grande destaque por retratar com genialidade o conflito oriente/ocidente dentro da sociedade húngara. Krudy Gyula é uma grata surpresa nesse livro, seu conto Uma das Histórias do Soldado Raso Harras Rudolf é incrível, e um anacronismo moderno que deveria colocar esse entre as pérolas da contística mundial; é talvez o melhor conto da coletânea.

Os dois escritores que se seguem (Molnár Ferenc e Móricz Zsigmond) mostram mais profundamente o homem húngaro, particularmente o despossuído. Zsigmond é o melhor dos dois, e seus 3 contos são obras primas, de um naturalismo moderado e bem estruturado. Bárbaros figura entre os melhores contos do livro. Podemos compreender muito da cultura do país por estes contos, e essa cultura nos parece muito antiquada, ao nosso olhar ocidental, o que mostra um grande atraso da chegada do mundo "capitalista ocidental" em algumas regiões da hungria, que mais parecem feudos medievais, ao mesmo tempo que as grandes cidades parecem uma nova Viena.

Bíró Lajos é um escritor original e interessante, mas seu conto fica meio apagado em relação a outros do livro. Kaffka Margit é a única mulher do livro, e ainda por cima descendente de tchecos. Seu conto fala da pobresa melancólica, sem perspectivas, enquanto o humorista Kosztolányi Desö já é bem mais otimista, apesar de sarcástico e irônico, e aparece com cinco contos na antologia, todos eles aparentemente sem um foco na narrativa, mas na em uma ideia ou concelho, quase uma coda em seus contos. Destaque para Auréola Cinzenta e Aventura Búlgara.

Szép Ernö é dito como intraduzível, e o próprio tradutor diz que escolheu um conto que não é dos melhores de sua produção em respeito à "impossibilidade" de verter outros. Apesar de tudo, seu conto Murglics mostra-se de qualidade.

Karinthy Friges é escritor alegre, outro humorista, e até satirista, e seus três contos se mostram muito agradáveis de se ler. Molnár Ákos tem como biografia uma das histórias mais comoventes do livro, mas seu conto é um tanto alegre (apesar de que não deveriamos rir) e, junto de Pap Károly (também morto no ódio nazista) escrevem dois dos contos mais bem realizados do livro (Um Almoço e Música, respectivamente). Mais do que a qualidade literária, a temática dos interesses e opressão, além de exploração em diferentes esferas, são os temas dos dois contos, sendo o primeiro uma narrativa do chefe em relação aos empregados, que devido uma incompreensão é quase anedótico, e o segundo mostra a exploração familiar, que faz um pai querer, sem sucesso, vender o filho por álcool. Os dois contos através do riso da situação mostram graves incoerências e atrocidades da sociedade. Ambos figuram entre os melhores contos. Mesmo valor social possui o conto de Gelléri Andor Endre, que poderia muito bem ser escrito no Brasil sem problemas.


Os dois contistas e contos que faltam (O Criminoso de Márai Sándor e Madelon, a cachorra de Szerb Antal) são de grande valor literário, mesmo sem ser propriamente sociais ou propriamente "húngaros" (no sentido nacionalista). O criminoso recebe destaque devido ao trabalho metalinguístico e bom aproveitamento dos clichés da literatura policial, e como paródia do gênero é a mais bem realizada que conheço.

Por fim, o que posso dizer sobre a edição? 3 dos maiores nomes das letras nacionais assinam esse livro: Paulo Ronai (organização, estudo, tradução e notas), Guimarães Rosa (introdução) e Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira (revisão); ou seja, não se pode reclamar de nada. É um trabalho feito com amor, e a capa, apesar de simples, exemplifica muito bem a "alma" do livro. Os problemas do livro são só os que são comuns à toda antologia e à todo livro de uma língua muito diferente da nossa: a diferença da qualidade dos textos, a apresentação do escritor por "amostragem", na maioria das vezes imprecisa, a vontade de querer ler mais do mesmo autor e saber que não possui nada ou dele publicado (dos escritores aqui presentes só sei do livro Os Meninos da Rua Paulo de Molnár e O Homem Invisível de Gárdonyi publicados no Brasil), e, por fim, a dificuldade de pronunciar, e por conseguinte memorizar, a maioria dos nomes próprios.

Recomendadíssimo, apesar de difícil de achar, é um livro indispensável para se ter em casa.

Nota do Elaphar: 9,8
Edição Lida: RÓNAI, Paulo (org). Antologia do Conto Húngaro. tradução e notas de Paulo Ronái. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1958.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Songs of Li-Tai-Pé from the Cancioneiro Chinês of Antônio Castro Feijó - Trad:Herbert Stabler

Para o DL 2012 resolvi ler esse livro, que é no mínimo um caso bizarro, que põe em dúvida algumas questões de autoria ou orientalidade. A primeira coisa que chama atenção é que, se o tema do DL é escritor oriental, por quê o nome de Antônio Castro Feijó, notável parnasiano português,  está na frente, ao lado de Herbert Stabler, como autor do livro? O caso é um tento complicado, já que, na verdade, o livro contem uma tradução inglesa de poesias chinesas da disnastia Tang, mas não uma tradução direta, mas sim uma tradução e recriação portuguêsa de Feijó, que por sua vez leu as poesias chinesas através de Le Livre de Jade de Judith Warton, que traduziu com auxilio de um chinês poesias para o francês; ou seja, essa é uma tradução inglesa da tradução brasileira da tradução francesa de poesias chinesas.

A literatura chinesa é, provavelmente, a mais rica do oriente, e talvez a mais rica do mundo, ao menos em verso (em prosa os povos semíticos ganham em tradição e qualidade). A dinastia Tang é das mais ricas, e é engraçado que a china também possui uma das mais antigas tradições de poetisas (ou poetas mulheres, se preferir), possuindo um volume monumental de produção feminina em versos.

Quanto à tradução, há muito mais atás desse simples ciclo de traduções sucessivas. Primeiro deve-se ver a importância que teve o Livre de Jade de Judith Warton (que lerei em breve) ne história da poesia ocidental. Um dos ideais do parnasianismo era o exotismo, e uma das formas de tê-lo era aproveitando temáticas orientais. A poesia, arte e povo chinês foi estremamente sedutora aos poetas da época, e o Livre de Jade foi um dos grandes responsáveis pelo conhecimento ocidental da poesia chinesa. Para se ter uma idéia, no brasil muitos poetas e prosadores falaram sobre a china e/ou a citaram em seus escritos, dentre eles Bilac, Raimundo Correia e até Machado de Assis (que traduziu alguns poemas do Livre de Jade).

Aí chegamos em Feijó. Como bom parnasiano que era, também ficou tentado a usar a china em sua obra poética, e assim como Machado de Assis, traduziu uma série de poemas do Livro de Jade, mas ao invés de apenas colocar como uma parte de um livro, lançou um livro inteiro com essas recriações. É importante mencionar que a ideia de tradução para esses poetas é muito diferente da que muitas pessoas tem: a tradução é um processo criador, onde fidelidade textual e até formal pouco importa comparado à expressão poética. Tanto Machado de Assis como Castro Feijó fizeram dessa poesia oriental uma parte de sua própria obra poética e filosofia poética, e é muito difício dizer até que ponto essas poesias continuam "chinesas" ou passam a "portuguesas". Isso sem contar o fato de que essas poesias passaram por quatro mãos (o poeta chinês, Judith Gautier, Feijó e o tradutor inglês Stabler).

As diferenças entre os textos é tão gritante que, por exemplo, a poesia "The Mandarin's Wives" é composta de 3 estrofes, cada uma com a voz de uma esposa do mandarim, enquanto na versão francesa de Judith o poema é "Les Trois Femmes du Mandarin" e possui quatro parágrafos, os três primeiros com as vozes das três mulheres  (a esposa, a concubina e a criada, não mais 3 esposas) e no último a voz do próprio mandarim. Mais interessante é perceber a diferença entre as descrições, como se pode perceber no seguinte trecho:
Comes an Hour, half sad, half sacred,
The Humming Birds flutter by,
Giving the Lips of the Flowers,
A tender Caress as they fly.

In the distance, his Skiff not moving,
The Fisherman, sunbronzed and tall,
Breaks the lake's silver surface,
As he draws in his Net with is haul.
    Li-Tai-Pé - The Fisherman

C'est le moment où les papillons poudrés de soufre appuient leurs têtes veloutées sur le coeur des fleurs.
Le pêcheur, de son bateau immobile, jete ses filets qui brisent la surface de l'eau.
    Li-Tai-Pê - Le Pêcheur
Percebe-se claramente a diferença de tom, linguagem até mesmo de descrições (que são mais frequentes na tradução inglesa, por ser bem maior que a versão francesa) e até mesmo na imagem e significação.

Eis aí o maior problema deste livro. Entendo que foi escrito para possuir uma significação isolada dos textos que deram origem a essa versão, mas o problema é que esse livro é fraco. A versão de Judith aparentemente (não a li, mas sei que foi feita em prosa) perde em poeticidade, e essa, apesar de ser em verso, não a ganha. Os poemas "chineses" que aqui aparecem se parecem mais um arcadismo ralo, só que sem pastores e ovelhas (mas mantendo as flores e as flautas).

O livro é dividido em 4 partes: Primavera, Verão, Outono e Inverno. As duas primeiras são completamente maçantes, com aquele mal lirismo de nosso arcadismo. O outono e inverno são melhores, mostrando um pouco mais os elementos que já conhecia da poesia chinesa. Diferente do que o nome sugere, não contém apenas poemas de Li-Tai-Pé, mas de vários outros poetas da dinastia Tang, entre eles Tu-Fu, meu favorito. Enfim, é um livro curto (apenas 24 poemas e um longo prefácio, totalizando umas 70 páginas) mas que não vale tanto a pena ler. Talvez a versão em portugês seja melhor, mas duvido!

Acho desnecessário mostrar exemplos de poesias, já que estão em inglês e o livro está em domínio público, assim como acho inútil traduzir (ou melhor, retraduzir) já que o texto já é uma tradução do português, que não pude encontrar.

Nota do Elaphar: 7,2
Edição Lida: FEIJÓ, A.C; StTABLER, J.H; Songs of Li-Tai-Pé from Cancioneiro Chinês. An intrepretation of Portuguese by Jordan Herbert Stabler. New York: Madison Square Press, 1922.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Diário de Prisão - Ho Chi Minh

O tema do Desafio Literário do mês de Abril é Escritores Orientais. Oa que parece, os escritores orientais seriam, ao ver da equipe do DL apenas os escritores do Extremo Oriente e Sul da Asia. No momento vou usar um autor menos polêmico, que é Ho Chi Minh, do Vietnã, e um livro escrito em chinês. Existe alguns problemas gerais para se definir a "orientalidade" de certos escritores, entre eles a língua e a cultura, mas isso é ainda mais problemático. Apesar da equipe do DL restringir claramente os textos de povos do Oriente Médio, vou recusar a seguir essa exclusão devido critérios que falarei mais adiante. No entanto, o momento agora é de falar desse vietnamita que escreveu em chinês.

A própria história da gênese desse livro é interessantíssima. Ho Chi Minh era um revolucionário do Vietnã e um dos maiores comunistas de seu tempo, e foi preso na China durante um tempo por querer falar com o Mandarin. Durante sua estada na prisão escreveu em Chinês, já que se escrevesse em sua língua chamaria atenção dos guardas, um diário contando o que via e o que passava na prisão. O interessante desse diário é que é escrito em versos, num tradicional verso chinês, que perdeu, lastimavelmente, toda a sua forma e graça na tradução. A tradução é, além de fraca, de segunda mão, ou seja, traduzido do inglês, provavelmente de uma tradução tão fraca quanto.

Os versos são de vários tipos: alguns são confessionais, outros filosóficos, outros líricos e paisagísticos, outros pequenos quadros do quotidiano da prisão. Mas todos mostram uma vida desumana e monstruosa privada da liberdade, além do temperamento do poeta, que é calmo e de mente equilibrada. Um desses poemas tem muito destaque (Jogo de Palavras), pelo trabalho com a própria linguagem e ideologia que é feito, que foi perdido totalmente na tradução, e o que resta é apenas uma explicação do poema.

Esse é um livro que me faz ter vontade de aprender Chinês para poder lê-lo e quem sabe traduzí-lo. A tradução não é boa, mas o livro sim, apesar de perder sua poeticidade, ainda mantém parte de sua substância, a descritiva e ideológica. Pouco se pode falar sobre esses versos. O que me resta é mostrar algumas poesias desse livro.
A RAÇÃO DE ÁGUA
Cada um de nós tem como ração meio jarro de água
Para o banho ou para ferver o chá, conforme o gosto:
Se você quer lavar o rosto, não terá como preparar o chá:
Se quer tomar seu chá não poderá lavar o rosto.
 JOGO
Lá fora, as pessoas que jogam são presas,
Mas uma vez na prisão, podem jogar o quanto quiseres;
Assim, é claro, os presos sempre lamentam:
"Por que não pensei antes em vir para cá?"
MORTE DE UM HOMEM PRESO COMO JOGADOR
Nada mais restou dele senão ´pele e osso.
Miséria, frio e fome foram seu fim.
Na última noite ele dormiu perto de mim,
E hoje de m,anhã partiu para o país das Nove Primaveras.
 NOITES INSONES
Através de infindas noites, quando o sono se recusa a vir,
Escrevo mais de cem poemas sobre a vida na prisão.
Ao final de cada quadra, deixo de lado meu pincel,
E através das grades olho para o alto, para o céu livre.
Nota do Elaphar: 8,2
Edição Lida: Diário de Prisão de Ho Chi Minh. Introdução de Harrisson E. Salisbury. Prefácio de Phan Nhuan. Rio de Janeiro: Difel, s/d.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Assassinatos na Academia Brasileira de Letras - Jô Soares

Jô Soares é um humorista respeitadíssimo, além de escritor famoso. Independente da qualidade de seus livros, eles vendem muito.

Essa narrativa conta de forma bem humorada, algumas vezes não tão bem assim, um caso improvável de um serial killer que mata acadêmicos da ABL com um veneno letal, ao passo que o primeiro acadêmico morto, Belizário Bezerra, escreve um livro justamente contando a história de um assassino de acadêmicos, intitulado Assassinatos na Academia Btasileira de Letras. Percebe-se de cara a metalinguagem, que será muito presente no decorrer da obra.

Além da já dita metalinguagem, outro recurso que é muito usado pelo autor é o de citação. O nome do detetive é Machado Machado (em homenagem a Machado de Assis no prenome e o sobrenome Machado), além desse detetive ter a mania de citar Machado (o de Assis). Outras intertextualidades também surgem na narrativa.

Porém há uma série de problemas no livro. O primeiro é a falta de graça na maior parte do livro, que na maioria das vezes só é engraçado na coda de alguns capítulos. Outro é que a característica geralmente mais elogiada do livro, a pesquisa histórica, é falha e fantasiosa, numa mistura incongruente de realidade, não-realidade, ficção e erro. Essa "pesquisa histórica" deveria também ser acompanhada de uma pesquisa filológica. Sério, na maioria das resenhas que vejo sobre esse livro o único elogio que as pessoas costumam fazer é sobre as páginas do jornal "O Paiz" que aparecem com uma suposta "grafia original" da época, que não passa de uma linguagem moderna com algumas marcas arcaizantes. Algumas palavras no jornal aparecem com grafia atualizada e fora da grafia da época, o que é uma pena. Não sei se corrigiram em edições subsequentes.

A história do serial killer começa a tomar folego com os últimos assassinatos (depois da metade do livro), e o autor passa a maior parte do tempo em rodeios e investigações infrutíferas. Os personagens são todos previsíveis, e incrivelmente quase todos possuem sérios disturbios sociais ou mentais. E para variar o detetive Machado Machado pega todas as mulheres do livro, ou pelo menos as mulheres bonitas.

Quando comecei a ler o livro estava doido para dar uma spoilada aqui (faz tempos que não faço isso), mas o livro, apesar de algum humor - como na passagem onde Machado Machado até pensa em parar de fumar, e o motivo, ou quando o carro fica sem gasolina - não me deu a menor vontade de estragar a vontade de vocês lerem o livro, que pode até ser nula. Não me entendam mal, o livro é até legível, mas não é bom. Dá para ler sem morrer de tédio, devido a algumas passagens de humor bem ou mal colocadas, mas no final a sensação que dá é que foram algumas horas perdidas. Por fim o livro é curto, páginas grossas para parecer volumoso e um bom papel para a leitura.

Esse livro foi lido para o desafio literário 2012.

terça-feira, 20 de março de 2012

Les Mains D'Orlac (Première Partie) - Maurice Renard

Não consigo compreender como condenaram, no Brasil, a obra de Maurice Renard ao esquecimento. Não há um único livro desse autor publicado no Brasil, e além da obra dele estar em domínio público é uma obra que povoa o pensamento popular, mesmo que indiretamente. Não há razão, já que se for considerar a obra desse escritor como medíocre e/ou sem grande público consumidor, o mesmo poderia ser dito de Maurice Leblanc, que enche as prateleiras de nossas livrarias.

Maurice Renard foi um escritor de histórias fantásticas e de ficção científica do final do século passado e início do presente. Podem não conhecer seu nome, mas suas criações são, direta ou indiretamente, repetidas na cultura popular, como máquinas de encolher ou transplante de mãos, que é o caso da presente narrativa. Les Mains D'Orlac é a história de um pianista que sofre um acidente ferroviário tem as mãos destroçadas, e após passar por um transplante de mãos coisas estranhas acontecem, já que mão era de um assassino. Todos conhecem alguma citação à essa história, mesmo que seja o célebre episódio do Chapolin colorado quando transplantam a mão de uma bailarina. Esse livro possui ao menos 4 adaptações cinematográficas, e já assisti o filme alemão.

Existe uma grande dificuldade para ler esse livro: o francês, dado a inexistência de versão brasileira. Para um estudante indisciplinado e autodidata da língua, é muito difícil ler um texto completo, apesar dos conhecimentos no idioma. O excesso abusivo da palavra "Mains" é um tanto irritante, e confunde um pouco a leitura.

Li só o primeiro lvro, contendo a história do acidente e da cirurgia, mas não conta a história dos acrimes e do desfecho. Acho que não vou ler ainda a segunda parte, então fica para a próxima.

A história e narrada por um jornalista investigativo, que deseja fazer um livro-reportagem sobre o acontecido, o que dá um quê de verossimilhança na narrativa. Não sei se é pelo meu desconhecimento no francês, mas acho que o narrador possui um interesse demasiado na esposa do personagem título. De qualquer modo, a história começa com um mal pressentimento de Rosine Orlac, e posteriormente com o acidente do marido.

Próximo da morte, Stéphen Orlac é levado para Cerval, o melhor cirurgião da frança, e é por intermédio desse cirurgião que Orlac é salvo e, posteriormente, faz o macabro transplante de mãos. Há outros personagens na narrativa, como o pai de Stéphen, que não vai ver o filho por preferir a sua reunião espírita.

A perte mais legal do livro, ou pelo menos a que mais gostei, foi quando chegam os seguradores do marido e Rosine percebe a importância das mãos para a vida de Stéphen, e fica atordoada e vai falar a Cerval:
– C’est moi, maître : Mme Orlac. J’ai oublié de vous dire… Les mains… Mon mari… C’est Stéphen Orlac, le pianiste. Alors, les mains, docteur, sauvez-les ! Il faut les sauver à tout prix, vous comprenez !… Comment va-t-il ?
On répond très posément :
– M. Orlac, petite madame, ne va ni mieux ni plus mal. Il a bien supporté la première intervention. Toujours sans connaissance. Ce qui domine notre affaire, c’est que le blessé puisse affronter l’opération de demain. Pour le moment, il est, si j’ose dire, imprégné de sérums. C’est une fleur coupée dans un vase plein d’eau. Une fleur qu’il s’agit de replanter. Nous en sommes là. La contusion au cerveau, voilà le hic. Le reste est secondaire, y compris les mains. Je ne puis vous assurer que d’une chose, c’est que tout sera fait de ce qui est faisable, et que j’emploierai tout mon pouvoir à sauver l’artiste avec l’homme.
Aí se pergunta, o que acontecerá? Cadê os homicídios em Série?

Isso só no segundo livro, que vai narrar os acontecimentos pós cirurgia, as mudanças e pesadelos em Orlac e os crimes que seguem a mão misteriosa. Não sei se por influênciaa do filme, mas acho que Orlac não se torna assassino, e sim outra pessoa aproveita os acontecimentos para cometer uma série de assassinatos e culpar as mãos. É uma pista que nos dá, levando em consideração que o capítulo de número 11 da segunda parte se chama "Confession" e o 13 se chama "Souricière". De quaquer modo só dá para saber lendo o segundo livro.

É difícil avaliar a linguagem do livro, por estar escrito em outra língua. O que pude perceber é o clima sombrio estilo noir, um tanto cliché, mas já deu origem à bons livros, particularmente de literatura policial e ficção científica, e nesse caso em particular, dos dois juntos. O filme e o texto são muito diferentes, de história e de nome dos personagens, além de ser um crime só no filme, e não vários.

Esse livro foi lido para o Desafio Literário de 2012. Apesar do tema ser Serial Killer, esse livro só narra o início da vida do suposto serial killer, de como sofreu o acidente e da cirurgia que dá origem (ou não) a uma série de crimes que acontecerá posteriormente. Não sei se vai dar tempo ainda de eu ler a segunda parte do livro para o desafio, mas faço um apelo para as editoras: traduzam e publiquem esse livro em português!!!

Nota do Elaphar: 7,9

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Pigmalião - George Bernard Shaw

Gosto muito de obras teatrais, particularmente Shakespeare. Só mesmo o Brasil ainda não possui um gênio indiscutível no Teatro. A Inglaterra tem Shakespeare, a frança tem Dumas, a Alemanha tem Hölderlin e Brecht, Portugal tem Gil Vicente. Nós temos Qorpo Santo e Antônio José (o Judeu), que são duas obras inacabadas, e alguns bons dramaturgos modernos, mas nos falta um "clássico genial" do gênero.

Divaguei e não cheguei em Bernard Shaw, que é um grande dramaturgo irlandês, que nasceu em uma época em que os irlandeses escreviam melhor que os ingleses.

Esse livro possui duas coisas que admiro: a intertextualidade desde o título e um personagem inusitado. Pigmalião é uma figura mitológica que teria sido um artesão que, ao construir uma estátua tão perfeita, se apaixona pela própria obra. Mas a história contada no livro não é a de Pigmalião mas de Higgins, um professor de fonética extremamente descortês e hilário.

A comédia se passa quando Higgins aceita uma aposta de transformar uma florista, Eliza Dolittle, em uma dama da realeza mudando sua fala Cockney. O aprendizado, o pai de Eliza, o tratamento "VIP" dado por Higgins são alguns dos pontos de maior graça da peça que, apesar do humor, possui muito de crítica social. Shaw é assumidamente um autor didático, e sua obra possui sempre uma finalidade de modificação do pensamento social. Apesar de tudo, a obra é grandiosa (não literalmente, já que é um texto pequeno) e popularíssima.

A tradução de Millor Fernandes é um exemplo de tradução. Millor já havia mostrado suas qualidades ao verter para o português brilhantemente A Megera Domada de Shakespeare, e esse trabalho com o texto de Shaw, de muito maior dificuldade, mostrou-se incrível. É muito difícil uma tradução de comédia manter a graça do texto fonte, já que a maior parte do humor está no trabalho com a linguagem, e não na narrativa. O trabalho de tradução de Millor é esplêndido.

Minha parte favorita é quando Eliza disse que não gosta do modo como Higgins trata-a, e compara com o do Coronel Pickening, que trata uma florista como se fosse duquesa, e Higgins, para rebater, afirma que possui o mesmo comportamento, tratando uma duquesa como se fosse uma florista.

O filme possui uma famosa adaptação cinematográfica (com o título de My Fair Lady, que acho que não possui nome próprio no Brasil, se tiver deve ser Minha Bela Dama), que aparentemente é um bom filme (só assisti metade), e peca só em uma coisa: é um musical americano. Sério! por quê os EUA não contratam atores que, de fato, saibam cantar para atuar em seus musicais? De qualquer modo, parece valer a pena assistir.

Esse livro foi lido para o Desafio Literário de 2012. É um livro fácil de ser encontrado em qualquer livraria por fazer parte da coleção L&PM Pocket. Não sei se a tradução do Millor pode ser encontrada em outra coleção (de formato grande). Com louvor esse livro entra, junto com Lolita e A Volta do Parafuso, no hall dos livros que recebem a nota máxima por esse blog.

Nota do Elaphar: 10

Edição Lida: SHAW, George Bernard. Pigmalião. Trad: Millor Fernandes. Porto Alegre: L&PM Pocket.

Esaú e Jacob - Machado de Assis

A literatura, de um modo geral, gosta da figura dos gêmeos. Muitos escritores se dedicaram a escrever sobre personagens que eram gêmeos idênticos, e na maioria das vezes, esses personagens eram extremamente unidos e harmônicos, e quando a história era amorosa, se apaixonavam pela mesma pessoa. Porém no que talvez seja o maior patrimônio literário da cultura ocidental (Bíblia Sagrada Cristã) os gêmeos costumam ser descritos de forma um pouco mais agressiva, como competidores (como é o caso de Esaú e Jacó), e isso se estende aos outros personagens fraternos do livro (José e seus irmãos). Partindo da narrativa bíblica Machado de Assis cria o seu livro (que fica um pouco apagado em meio à Memórias Póstumas, Dom Casmurro, Histórias sem Data e Papéis Avulsos) que é a vida dos gêmeos Pedro e Paulo contada pelo conselheiro Ayres.

A obra faz par com Memorial de Ayres, mas distingue-se dela em narrativa, estilo e personagens. Pedro e Paulo são gêmeos que, à semelhança de Esaú e Jacó, brigaram dentro da barriga da mãe, e desde então não chegaram à um arranjo. A obra começa com a visita da mãe dos meninos a uma vidente, que, sibilina, prevê apenas "cousas futuras" e afirma que os filhos brigaram ainda no ventre. A mãe, impressionada dá uma grande esmola na rua, depois vão à um velório. Algo interessante na obra machadiana são as reviravoltas e simetrias da obra, já que a previsão é algo que acompanha todo o livro, a esmola aparece novamente ao final, assim como o enterro, ambas de formas surpreendentes.
O doutor foi à estante e tirou uma Bíblia, encadernada em couro, com grandes fechos de metal. Abriu a Epístola de São Paulo aos Gálatas, e leu a passagem do capítulo II, versículo 11, em que o apóstolo conta que, indo a Antioquia, onde estava São Pedro, "resistiu-lhe na cara".
Santos leu e teve uma idéia. As idéias querem-se festejadas, quando são belas, e examinadas, quando novas; a dele era a um tempo nova e bela. Deslumbrado, ergueu a mão e deu uma palmada na folha, bradando:
— Sem contar que este número onze do versículo, composto de dois algarismos iguais, 1 e 1, é um número gêmeo, não lhe parece?
— Justamente. E mais: o capítulo é o segundo, isto é, dois, que é o próprio número dos irmãos gêmeos.
Mistério engendra mistério. Havia mais de um elo íntimo, substancial, escondido, que ligava tudo. Briga, Pedro e Paulo, irmãos gêmeos, números gêmeos, tudo eram águas de mistério que eles agora rasgavam, nadando e bracejando com força. Santos foi mais ao fundo; não seriam os dois meninos os próprios espíritos de São Pedro e de São Paulo, que renasciam agora, e ele, pai dos dois apóstolos?... A fé transfigura; Santos tinha um ar quase divino, trepou em si mesmo, e os olhos, ordinariamente sem expressão, pareciam entornar a chama da vida. Pai de apóstolos! e que apóstolos! Plácido esteve quase, quase a crer também, achava-se dentro de um mar torvo, soturno, onde as vozes do infinito se perdiam, mas logo lhe acudia que os espíritos de São Pedro e São Paulo tinham chegado à perfeição; não tornariam cá. Não importa; seriam outros, grandes e nobres. Os seus destinos podiam ser brilhantes; tinha razão a cabocla, sem saber o que dizia.
— Deixe às senhoras as suas crenças da meninice, concluiu; se elas têm fé na tal mulher do Castelo, e acham que é um veículo de verdade, não as desminta por hora. Diga-lhes que eu estou de acordo com o seu oráculo. Teste David cum Sibylla.
— Digo, digo! escreva a frase.
Plácido foi à secretária, escreveu o verso, e deu-lhe o papel, mas já então Santos advertira que mostrá-lo à mulher era confessar a consulta espírita, e naturalmente o perjúrio. Referiu ao amigo os escrúpulos de Natividade e pediu que calassem tudo.
— Estando com ela, não lhe diga o que se passou entre nós.
Saiu logo depois, arrependido da indiscrição, mas deslumbrado da revelação. Ia cheio de números da Escritura, de Pedro e Paulo, de Esaú e Jacó. O ar da rua não espanou a poeira do mistério; ao contrário, o céu azul, a praia sossegada, os montes verdes como que o cercavam e cobriam de um véu mais transparente e infinito. A rixa dos meninos, fato raro ou único, era uma distinção divina. Contrariamente à esposa, que cuidava somente da grandeza futura dos filhos, Santos pensava no conflito passado.
 Os jovens crescem e a mãe possui problemas ao lidar com os filhos, que vivem brigando. É interessante que os irmãos Pedro e Paulo não são verdadeiramente diferentes em opinião e temperamento, antes iguais, só que ambos têm uma tendência muito forte de entrar em conflito com o outro, assim como o Pedro e o Paulo bíblicos. Machado maneja muito bem esses conflitos familiares internos e essas pseudo-diferenças.

Como o habitual do estilo do autor, a metalinguagem se faz muito presente, e enquanto o narrador tece a história, traça-se também uma íntima relação de produção de sentidos entre leitor-autor-texto-sociedade. A linguagem da obra é o que faz machado ficar extremamente vivo entre nós. Esaú e Jacob é uma obra grandiosa, e só não comento mais sobre o livro por conta dos Spoillers. Outros personagens que chamam atenção são Flora (que desconfio ser uma paixão, de certo modo pedófila, do Ayres), Ayres, Natividade, Custódio (da Tabuleta Velha, que é um episódio anedótico da obra) entre outros.

Esse livro foi lido para o Desafio Literário do mês de Fevereiro, e é facilmente encontrado em qualquer livraria, qualquer editora e em todos os formatos, e por estar em domínio público pode ser facilmente baixado legalmente da internet. Particularmente, acho um charme ler as edições mais antigas, que conservam a grafia original. Citação acima tirada do site do MEC.


Nota do Elaphar: 9,4

Edição Lida:
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Esaú e Jacob. São Paulo: W.M. Jackson Editores, 1950, 432p. (Obra Completa de Machado de Assis Vol.8)

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Livro de Jeremias - Anônimo

É a segunda vez que leio um texto da grande compilação chamada de Tanakh pelos judeus e de Antigo Testamento pelos cristãos. E pela segunda vez coloco a autoria como anônima, apesar de que muitos religiosos consideram que esse livro teria sido escrito pelo profeta Jeremias ou ditado por este ao seu auxiliar Baruc (ou Baruque ou Baruch). Uma pena a coisa não ser tão simples assim. As redações sucessivas, partes históricas posteriores, fragmentaridade do discurso, as diferentes vozes discursivas, oposição de ideias e semelhanças com diversos outros textos anteriores e posteriores acabam indicando autoria múltipla, como a pós-exílica (nos dois capítulos finais) e da Obra Histórica Deuteronomista. Para agravar, há ao menos duas versões bem diferentes do livro que são aceitas e coexistem: o livro de Jeremias do texto massorético e da septuaginta.
Alerta importante: Eu estou lendo o Livro de Jeremias como um texto LITERÁRIO, não RELIGIOSO. Os profetas, reis, acontecimentos e até mesmo Deus estão sendo vistos aqui como PERSONAGENS e TRAMAS literários puramente. Não está em cheque a religião, mas somente a literatura.
Existem grandes dificuldades, para um cristão ou judeu, de se ler algum texto sagrado como literatura. A primeira delas é a leitura dogmática e muitas vezes forçada de certas passagens. Lembro de algumas leituras bizarras que alguns me tentaram passar goela abaixo. Outro problema é a questão da veracidade, onde as diversas leituras (muitas delas de natureza textual problemática) são vistas como verdade absoluta e acabam gerando conflitos interminaveis. Jeremias em especial fornece outra dificuldade: a montagem quase aleatória de muitos fragmentos, que não é nem cronológica nem temática, e acaba gerando algumas dificuldades de leitura no sentido de organizar a cronologia dos fatos.

Jeremias é de origem humilde, e foi profeta durante o reinado de 3 reis: Josias, Jeoaquim e Zedequias, sendo que esses nomes se alteram um pouco de versão para versão. Continua a história até depois do exílio na babilônia. As profecias de Jeremias são importantíssimas para a história bíblica, pois sua previsão de libertação é importante para a história de Daniel e ao profetizar um salvador da família de Davi acaba sendo pedra de toque para o início do livro de Mateus no Novo Testamento, que justifica genealogicamente o salvador como Cristo. Apesar de possuir os dois últimos capítulos sobre a libertação judaica e a queda babilônica, Jeremias não viveu para ver esses acontecimentos, e a flexão passada aponta uma inclusão em redação posterior.

Muito do que aparece no livro de Jeremias é recorrente na história dos judeus: idolatria provocando a ira de Deus, que entrega o seu povo na mão de invasores até o arrependimento. Apesar do tema recorrente, esse livro é especialíssimo, por isso, muito querido. Não há como se mapear a influência que esse livro teve no imaginário e na literatura universal.

Deus avisa Jeremias que o povo de Judá será destruído por outros povos, por ter pecado contra o Senhor:
Valeu-te este castigo tua malícia, e tuas infidelidades atraíram sobre ti a punição. Sabe, portanto, e vê quanto te foi funesto e amargo abandonar o Senhor teu Deus e não ter tido mais temor algum de mim - oráculo do Senhor JAVÉ dos exércitos.
Jeremias 2:19
[...]
Do seu covil parte um leão, e qual demolidor de nações se põe a caminho, saindo de seu refúgio para transformar em deserto a tua terra, e as cidades em desolação, onde ninguém mais habitará.
Revesti-vos, pois, de saco, chorai e gemei, pois que a tremenda cólera do Senhor não se afastou de nós.
Jeremias 4:7-8
Jeremias, por sua piedade pede a Deus várias vezes para que perdoe o povo:
Minhas entranhas! Minhas entranhas! Sofro! Oh! as fibras de meu coração! O coração me bate, não me posso calar! Ouço o som das trombetas e o fragor da batalha.
Anunciam-se desastres sobre desastres, todo o país foi devastado. Foram de repente destruídas minhas tendas; num instante, meus pavilhões.
Até quando verei o estandarte, e ouvirei o som da trombeta?
Está louco o meu povo; nem mais me conhece. São filhos insensatos, desprovidos de inteligência, hábeis em praticar o mal, incapazes do bem.
Olho para a terra: tudo é caótico e deserto; para o céu: dele desapareceu toda a luz.
Olho para as montanhas e as vejo vacilar; e as colinas todas estremecem.
Olho: já não há nenhum ser humano; todas as aves do céu fugiram.
Olho: tornaram-se desertos os campos; todas as cidades foram destruídas diante do Senhor, ante a fúria de sua cólera.
Porque toda a terra será devastada - oráculo do Senhor -, mas não a exterminarei completamente.
Eis a razão pela qual a terra cobriu-se de luto, e o céu, lá no alto, revestiu-se de negror. Pois que eu disse, e assim decretei: não voltarei atrás e não me retratarei.
Ao grito de: Cavaleiros! Arqueiros!, toda a terra desandou em fuga. Lançaram-se nos esconderijos e galgaram rochedos, as cidades foram abandonadas e os habitantes desapareceram.
E tu, devastada, para que revestir-te de púrpura, engalanar-te com ornamentos de ouro, e alongar-te os olhos com pinturas? Em vão tentas ser bela; desprezam-te os amantes. É tua vida que odeiam.
Ouço gritos como os da mulher ao dar à luz, gritos de angústia quais os do primeiro parto. São os clamores da filha de Sião; geme e ergue as mãos: Desgraçada de mim! Desfaleço ante os algozes.
Jeremias 4:19-31
Nesse início do livro, Deus se aparenta muito com o Javé do Gênesis, parecendo assustadoramente humano. É importante perceber que a piedade de Jeremias vai se esvaíndo quando seus irmãos conspiram contra ele.

O povo de Israel, como criança, faz o que é habitual: rejeita a palavra de Deus. É importante o fato da presença de falsos profetas profetizando em nome de Deus, dizendo que não virá praga e mal nenhum. Do meio para o final do livro há muitas reflexões sobre a profecia, algumas delas muito legais. Uma muito boa é quando Jeremias é condenado pelo povo (cap 26), e lembram-se os precedentes dos profetas que também anunciaram desgraças e foram condenados ou poupados, o que resulta na prisão de Jeremias mas salva sua vida. Há também uma mensagem específica contra esses profetas em 23:9-32. Outra passagem legal em relação à profetas é a seguinte:
[o]s profetas que nos precederam a mim e a ti anunciaram, contra numerosos países e reinos poderosos, guerra, fome e peste.
Quanto ao profeta que predisse a felicidade, somente quando seu oráculo se realizar, poder-se-á saber se ele é realmente um enviado do Senhor.
Jeremias 28:8-9
Esse livro possui uma série de metáforas como a do pode de barro (18:1-12) e a dos cestos de figo (cap 24). Muito interessante também é a influência que esse livro tem sobre outros textos, tanto bíblicos (como 23:5, que posteriormente será retomado em Mateus para justificar o "reinado" de Cristo), quanto literários (o famoso Bálsamo de Gileade de Poe) e músicais (se não ouviram ainda a Sinfonia No.1 "Jeremiah" de Bernstein não sabem o que é música).

Faltam ainda as outras coisas do livro: Jeremias fala sempre a palavra de Deus e nunca o ouvem (nem o povo, nem o rei; nem antes da dominação babilônica nem depois), os babilônicos dominam Judá e todas as suas cidades, depois o povo foge para o Egito mesmo com o alerta de Jeremias, e por fim o Egito cai. No fim do livro se fala da destruição da Babilônia, mas isso é posterior. Interessante notar a relação que há entre as odes finais do livro e o Salmo 137 (ambos sobre a destruição babilônica).

O livro é cheio de nuances que, se fosse tentar expicar todas, escreveria páginas e páginas e não terminaria. Há mais uma coisa que chama atenção é a referência aos escritos de Baruc que foram perdidos ou destruídos. Baruc era auxiliar de Jeremias e escrevia o que o profeta ditava (e não é necessariamente o que o livro contém), e há no livro um apelo para a escrita.

As traduções do texto são muitas e variadas. A Almeida e a NTLH são provavelmente as mais conhecidas, apesar de que a NTLH peca por ser escrita em péssimo português. Outras edições incluem a Traducção Brazileira, Ecumênica, Ave Maria, Pastoral e muitas outras. As citações acima são da versão Católica disponível em: http://www.bibliaonline.com.br/vc/jr/1, que não foi exatamente a versão lida.

Muitas outras coisas me chamaram atenção no livro, mas como não quero escrever um TCC (e a maioria dos leitores não querem ler um), dou minha resenha por encerrada e fica a dica da leitura do livro. Não é tão variado em histórias e dramas como outros livros históricos (como o Pentateuco, Juizes, Reis e Samuel por exemplo), mas é bem interessante também, apesar de que muitas repetições podem atrapalhar a leitura. Este livro foi lido para o Desafio Literário 2012.

Nota do Elaphar: 8,4

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Electra - Eurípides


Segundo livro de Eurípides lido, e muitas coisas novas podem ser ditas sobre este livro.

A primeira coisa legal é que Electra é um mito que parece ter sido um dos preferidos do dramaturgo, já que todos os grandes dramaturgos gregos escreveram uma Electra (Sófocles e Ésquilo por exemplo). Um possível motivo por essa preferência talvez seja o nível de violência da obra, além da não punição dos heróis.

Comparado a Alceste, Electra é um drama bem mais tradicional, apesar de que o desenvolvimento dos heróis não ruma à aniquilação, que é característica tradicional da tragédia. Uma típica obra ultra-violenta do teatro grego (que vai retornar em Shakespeare, por exemplo). Electra narra a história dos filhos de Agamemnon, que após a morte do pai (pelas mãos de sua esposa), acabam sendo perseguidos. Orestes, irmão de Electra, é exilado e perseguido, enquanto a Electra é forçada a casar com um pobre, tentativa de deixá-la "fora de circulação", e evitar que um possível herdeiro decida se vingar. Orestes volta e busca a vingança, e junto de Electra (a grande cabeça da história) armam um plano de assassinar o atual rei (Egisto, casado com Climnestra, ex esposa de Agamemnon) e sua mãe.

Agora o que é especial nesse nível é o grau de profundidade psicológica dos personagens, sendo o remorso e o medo bem desenvolvidos na trama. Outro ponto de destaque é a reflexão sobre a insanidade divina, pois Orestes muitas vezes pensa o quão insana foi a órdem de Apolo de assassinar sua mãe e o usurpador do trono. Por fim, a crueldade de Electra.

Coisas curiosas vieram com a leitura do livro. Uma delas foi a descoberta da história do Voto de Minerva, já que Orestes será julgado por seu crime e o juri se divide igualmente de um grupo a favor e outro contra, aí Minerva (ou Atenas) intervém e Oreste é julgado inocente. Também é dessa narrativa que surge o chamado Complexo de Electra, termo cunhado por Jung para descrever a forma feminina do Complexo de Édipo.

Enfim, uma grande obra que vale a pena ser lida. Não é tão especial como Alceste, porém é mais dinâmica. Essa leitura faz parte do Desafio Literário 2012. Aguardem a próxima leitura, que será uma grande surpresa (se agradável ou não não sei).

Nota do Elaphar: 8,8

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Alceste - Eurípides

Desculpem aos meus fãs, se é que possuo algum, pelo meu longo desaparecimento. Fiquei um pouco cansado de resenhar durante um tempo (na verdade, fiquei um pouco sem vontade de resenhar, e se não fossem alguns comentários animadores não voltaria). Apesar de sair no meio do desafio literário de 2011 (em parte, pois li os livros, só não os resenhei), decidi novamente tentar concluir o desafio, e fiquei surpreso ao saber que fui leitor Ouro ainda no desafio anterior. Enfim, vamos ao que interessa....

É incrível como, apesar de ser fã dos clássicos greco-latinos, nunca havia lido Eurípides... Já possuia esse livro há tempos, só que nunca o tinha colocado em minhas prioridades de leitura... grande erro!

Simples: Eurípides talvez seja o mais inovador do tradicional teatro grego... é difícil presumir a musicalidade de seus versos e seu peso em sua língua original, hoje morta, mas acredito no que dizia Aristóteles sobre o poeta: Talvez Eurípides seja o melhor e mais trágico dos poetas gregos, apesar de escrever pior.

Alceste é uma obra teatral sem par em sua época... é uma obra que Shakespeare poderia assinar em sua época sem sentir-se envergonhado, aliás, há muito mais entre Eurípides e Shakespeare do que sonha nossa vã crítica literária. Não me deterei em diferenças formais a respeito da história, mas algumas que são mais interessantes: a presença do amor como elemento importante descrito na obra, e não como acessório para a história; os diálogos quase sofistas, onde diferentes pontos de vista criam diferentes verdades retoricamente (diálogo de Admeto e Féres, ou Hércules e Admeto); a presença de elementos filosóficos pré-socráticos como de Anaximandro ou Protágoras ou Heráclito; e um desfecho que vai contra o fado, o que parece incompatível com a tragédia, que tem no fado o seu principal elemento condutor. Essas são algumas das coisas que nunca vi na literatura anterior a Dante, exceto (em parte) no Tanakh.

A história é das mais conhecidas: a hora da morte chegou para Admeto, rei de Féres, mas Apolo consegue convencer a morte a levar quem optar por morrer no lugar do rei. Apesar de inúmeros amigos e pais em idade avançada, ninguém aceita morrer no lugar do rei, apenas sua mulher Alceste. A morte é impiedosa e leva Alceste embora, aí a tragédia está consumada.

Mas esse livro não é uma tragédia comum, e a narrativa acaba por não se cumprir completamente. Por acaso, Hércules está passando pelo local e se hospeda na casa de Admeto, que não nega a hospitalidade, e é o mesmo Hércules que derrota a morte e traz Alceste novamente para seu marido. Sem dúvidas, um desfecho que não é habitual em tragédias.

O mais interessante nessa tragédia é a matéria humana da composição, até mesmo na parte divina, e a figura da mulher. Falta um pouco da habitual violência exacerbada presente na literatura grega, mas as presenças inovadoras suplantam essa "carência", e diminuem a monotonia da óbra, que é interessante e profunda sem ser tão dinâmica quanto as tragédias de Ésquilo. Livro mais que indicado.

A respeito da tradução de J. B. de Mello e Souza, acho que talvez seja problemática por vários fatores: mudanças absurdas de registro, confusão onomástica de nomes gregos e latinos, tradução não versificada, e para piorar é fácil de ser encontrada em edição espúria e plagiada pela Martin Claret, e por outro lado, sua edição digna é difícil de ser achada por ser antiga (Jackson editores).

Essa leitura faz parte do Desafio Literário do mês de Fevereiro.

Nota do Elaphar: 9,2
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