Mostrando postagens com marcador Cânone. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Cânone. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Desafio Formas Fixas - Robert Browning

Desafio Formas Fixas de Poesia (4 – DRAMA EM VERSO)

The Complete Works of Robert Browning (Ohio/Baylor) Vol. 4 | Contendo:
A Blot in the 'Scutcheon
Colombe's Birthday
Dramatic Romances and Lyrics
Luria


Apesar de escolher concluir o desafio no modo Hard, frequentemente dou um “jeitinho brasileiro” no desafio. O fato é que apenas metade do livro efetivamente está sendo lido para o desafio (Colombe's Birthday e Luria), enquanto o resto na parte é releitura. Aliás, Dramatic Romances and Lyrics sequer é um drama. Mas claro que podemos pensar que eu estou lendo dois dramas em verso (de fato, são dois livros separados) e não meio livro. Mas passemos para a resenha.

Poucas coisas são unanimidades na imensa crítica ao poeta Robert Browning. O fato de que Browning fracassou miseravelmente como dramaturgo, se não é uma unanimidade, é sustentado pela maioria dos críticos. O que todos concordam é que a genialidade do escritor e sua grande obra está na poesia, e a maior parte dos críticos apontam as obras Men and Women (1855), Dramatis Personae (1864) e The Ring and the Book (1868-9) como a coroa do gênio de Browning. Mas ainda não se pode ignorar o teatro do escritor, tanto pelo fato de que ele escreveu uma boa quantidade de peças teatrais – oito, para ser exato, três delas frequentemente tidas por poesia e não teatro.

Se alguém quiser compreender porque o escritor é frequentemente tido como mal dramaturgo, basta ler A Blot in the 'Scutcheon (1843), mas primeiro vou fazer uma breve contextualização. O escritor iniciou a carreira como dramaturgo com o drama histórico Strafford (1837), encenada no mesmo ano pelo ator-empresário Macready. Se Strafford foi um sucesso ou fracasso estrondoso é uma questão de debate: embora a maioria dos críticos toma Strafford como tentativa fracassada (tanto pela sua qualidade como recepção), críticos como Chesterton e Cramer têm uma visão diferente da recepção da obra e críticos como McCormick são mais gentis em relação à qualidade da peça. A questão é que, ao menos na minha opinião, Strafford mostra um “futuro dramaturgo” completamente promissor – é uma estreia superior a Catalina, de Ibsen e mais experimental que Platonov, de Tchekhov, porém o fato é que Browning nunca escreveu um Pato Selvagem ou um Jardim das Cerejeiras. Porém a relação com o empresário começou a ficar problemática. Para além do stress da produção dramática (e da insistência de Macready de tornar o texto mais ordinário), Browning escreveu mais duas peças para o teatro de Macready, peças essas que foram rejeitadas depois de muita discussão. A transformação entre Strafford e A Blot in the 'Scutcheon é sintomática: o poeta se esforça para criar uma obra que se torne popular para o teatro vitoriano da época, o que significava muito convencionalismo de capa-e-espada e um melodrama ralo. A Blot é a encarnação dessa transformação defectiva gerada pele pressão do público teatral, e a prova de que, no fim das contas, Machado de Assis estava certo ao dizer que um grande dramaturgo não floresce sem um público adequado.

O maior problema da peça (A Blot) é que seu enredo é simplesmente absurdo e não convincente. Os personagens (com uma exceção) não são desenvolvidos satisfatoriamente, e incomodam o leitor por agirem completamente sem vontade e aparentemente conforme suas próprias naturezas. Thorold não quer matar Mertoun, mas o faz, ou melhor, Mertoun se deixa matar sem razão satisfatória. O relacionamento secreto e fora do casamento de Mildred e Mertoun também é estranho, e aparentemente incoerente com as atitudes que ambos possuem em relação a Thorold. Mertoun, por exemplo, não aparenta querer manter os encontros ilícitos com Mildred, não parece desejar pedir sua mão ao irmão Thorold (embora o faz porque é “obrigado”, aparentemente pela exigência do enredo), nem demonstra vontade nenhuma de perder a vida para um oponente que sequer o quer matar, mas o faz ainda assim porque “deve”, e ainda por cima, como último pedido, convence a Thorold que conte suas últimas palavras a Mildred, que “verdadeiramente ama” mesmo sabendo que isso a matará, o que também acontece. No final, os três personagens cometem um suicídio trágico e bisonho (Mertoun se deixa matar, Mildred morre de sofrimento e Thorold se envenena após tudo isso) que nem é grandioso ou “fatídico”, de modo que uma pitada do velho e ordinário bom-senso teria evitado. Para piorar, as entidades “ação” e “personagem” parecem tão completamente sem relação uma com a outra que ambas as entidades parecem apenas arbitrariamente postas no papel.

Guendolen é de longe a melhor personagem da obra, ou, ao menos possui alguma personalidade e as poucas boas linhas do drama, mas isso só pude notar agora, na minha segunda leitura. Isso, contudo, está ainda mais próximo de um defeito que uma qualidade, pois Guendolen e o marido Austin não fazem a menor diferença na peça. O comentário de Guendolen no primeiro ato é completamente aparte do resto do drama; as opiniões que ela apresenta a Mildred sobre Mertoun são completamente irrelevantes devido Mildred já ter uma opinião formada e invariável sobre o amante; o apoio moral que Guendolen dá a Mildred desfalecida não acrescenta nada ao desenvolvimento de nenhuma personagem exceto de si própria, e a sua descoberta por dedução do caso é completamente inútil pois não muda o curso da ação (Thorold vai descobrir por conta própria de modo independente poucas linhas depois); e o conselho de Guendolen a Thorold é, além de repetido, francamente ignorado. Guendolen é a única personagem desenvolvida e com aparência de realidade em toda a peça, mas ela é simplesmente irrelevante, de modo que se não existisse não faria a menor diferença para a história. Mas é Guendolen que possui tal maliciosa e proto-feminista afirmação interrompida:
He's proud, confess; so proud with brooding o'er
The light of his interminable line,
An ancestry with men, all paladins,
And women all . . .
Também é Guendolen que, no momento de dificuldade demonstra empatia, e a única para quem valores convencionais vazios significam menos que a emoção (amor e amizade, por Mildred, no caso). A passagem é longa (Ato II, v.323-360), mas provavelmente é a melhor sequência de 40 versos de todo o poema. Talvez a única decente.

Apenas como curiosidade, Charles Dickens amava essa peça. Aliás, enquanto Macready e John Forster duvidavam da peça Dickens tinha a absoluta convicção de que era uma bela obra, afirmando:
A peça de Browning me atirou em uma perfeita paixão do sofrimento. […] Ela é cheia de Gênio, pensamentos naturais e elevados, vigor profundo e ainda assim belo e simples. Não conheço nada, em nenhum livro que li, que me afete tanto quanto a recorrência de Mildreed ao “I was so young – I had no mother”. […] Eu juro que isso é uma tragédia que deve ser interpretada, e deve ser por Macready… E se disserem para Browning que eu a vi, conte também que eu, do fundo do coração, acredito que nenhum homem vivo (e nem muitos mortos) podem produzir tal obra.
E provavelmente por esse comentário a peça foi encenada, mas essa encenação foi responsável para destruir a já frágil amizade entre o poeta e o produtor. Sob vários aspectos, a produção foi um grande desastre, mas isso diz respeito ao histórico da première inglesa. A obra apesar de suas óbvias fraquezas foi muito popular, e foi e continua sendo a única peça de Browning que vez ou outra é encenada, e foi representada ao menos uma vintena de vezes durante a vida do escritor. A peça seguinte que ele escreveria já não seria para Macready.

Colombe's Birthday foi enviada para que Charles Kean representasse, e para a surpresa de todos os críticos foi prontamente aceita. Como a obra só poderia ser encenada no ano seguinte (1845) o poeta ficou impaciente, e desejou publicá-la imediatamente. Com isso, a peça só seria representada apenas em 1853 por Helen Faucit, e foi muito bem recebida. Para Browning e sua esposa, essa recepção favorável foi puro succès d'estime, já que, como bem nota EBB os atores representaram de modo miserável. Apesar disso, Colombe's Birthday me surpreendeu bastante, por várias razões.

A primeira e mais importante é bastante óbvia: depois de um início experimental com Strafford, Pippa Passes e King Victor and Charles, o esforço do poeta em escrever segundo as convenções foi de ruim (Return of Drusses) a medonho (A Blot). Após acompanhar esse desenvolvimento da carreira dramática de Browning, é realmente difícil esperar qualquer coisa decente que o poeta faça segundo as convenções (por si só ruins) do teatro da época. Colombe's Birthday é bem mais que decente, embora moldada em todas as convenções do período.

Como dito, ela não deixa de ter suas falhas como drama: é formalmente convencional, e as convenções do teatro vitoriano não eram as melhores, e a resolução embora faça grande diferença na moral da história não faz muito para o drama em si. Colombe no fim tem de decidir entre desposar Valence ou Berthold, ou mais especificamente, entre o amor e o poder.
Alerta!!! Esse texto pode conter spoilers como o fato de que no final Colombe escolhe Valence e perde todo o seu ducado para o príncipe Berthold... mas no fim, você provavelmente nunca vai ler ou ver essa peça encenada então provavelmente isso não faz a menor diferença... agora que você já sabe disso, pode continuar lendo o texto sem preocupações...
No final das contas, sentimos que não faz a menor diferença escolher um e outro. O grande tema e da peça é a separação radical entre o poder e amor, e a necessidade das pessoas em agir de acordo com uma escolha. Enquanto as escolhas de Hamlet e Macbeth são decisivas para a composição das suas peças (afinal, se eles optarem por não matar seus oponentes não há peça), a de Colombe é mera questão de gosto. Poderíamos até desgostar se Colombe escolhesse Berthold (personificando o Poder) em vez de Valence, mas o fato é que se fosse assim a peça ainda existiria, seria a mesma e com o mesmo valor.

Outro problema que notamos é o excesso de um estilo que emula o elizabetano, que obviamente já era velho e desgastado no período. Isso causa a impressão de que a obra fica bem melhor lida que efetivamente encenada com essa linguagem e estilo. Contudo, eu fui um leitor da peça, e como não vi nenhuma improvável representação dela, é como leitura que tenho de encerrar a minha análise.

Como uma peça literária, Colombe's Birthday, é fina, delicada e colorida. Diferente de qualquer outra peça teatral que Browning escreveu (mesmo Pippa Passes ou A Soul's Tragedy, que são bem superiores) os discursos dos personagens parece excepcionalmente adequados. As imagens e dicção usadas por cada personagem são muito bem trabalhadas, e lembrarão muito os futuros monólogos em verso branco do poeta. O uso de imagens florais para qualificar as várias características da duquesa é brilhante, mas é difícil de imaginá-las comunicando efetivamente durante a performance. Os personagens são mais ricamente construídos e variáveis, e não são amorfos ou falsos como os de A Blot. Colombe não se confunde com os servos, Valnce e Berhold são diferentes em caráter, sentimento e dicção, e Melchior se distingue de outros servos como Sabyne ou Guilbert, que também não se assemelham. Colombe's Birthday não é uma obra prima da dramaturgia, porém é uma obra bastante competente, talvez a mais competente já escrita segundo um padrão e nível tão baixos de expectativa dramática.

Dramatic Romances and Lyrics não é, como as outras, uma peça teatral. É a segunda coleção de poemas que Robert Browning escreveu e publicou. Apesar de não ser um livro tão popular como Dramatic Lyrics ou Men and Women (exceto pelo poemeto Home Thoughts, from Abroad), é muito bom lê-lo isoladamente para compreender melhor o desenvolvimento do poeta. Explico: estou acostumado a ler os poemas de Browning segundo a ordenação final que o poeta deu, em que reorganiza os poemas das três primeiras coleções em três categorias Lyrics, Romances e Men and Women.

Neste livro vemos muito bem todas as grandes características do gênio do poeta. Um bom monólogo rimado? Confere (Pictor Ignotus). Um bom poema narrativo? Confere (The Glove). Um bom monólogo dramático em verso branco? Confere (Saint Praxed's Church). Um poema com ritmo frenético e cantável? Confere (How they Brought the Good News from Ghent to Aix). Um poema que te faz pensar “mas que diabos de ritmo é esse”? Confere (The Lost Leader). Um poema que não dá para contar nem o primeiro verso? Confere (Now that I trying thy glass mask tightly, em The Laboratory). Rimas estrambólicas? Confere (já chego lá).

De longe, o que mais chama nesse volume é a qualidade das rimas. No volume de poesias anterior já possuíamos alguns exemplos (Adela/May, em Count Gismond) mas eram tímidos; em Dramatic Lyrics as rimas soavam tão naturais (Soliloquy of Spanish Cloister) ou praticamente desapareciam com a leitura do poema (My Last Duchess). Aqui nem sempre é o caso. Eu realmente não sei que tipo de pronúncia macabra rima Chablis com Rabelais (Sibranus Schafnaburguensis), mas alguns casos isso chega a ser problemático. Sintomático é The Flying of the Duchess, que é difícil de seguir. Não porque é um poema truncado, ou hermético, mas as rimas chamam tanto a atenção e o ritmo impulsiona elas, que a mera pronunciação forçada delas (exigida pelo ritmo) atrapalham a leitura mesmo das frases simples. Por exemplo:
when we've lost the music,
Aways made me – and no doubt makes you – sick.
A frase é completamente simples, mas a pronúncia “YOUsick” impulsionada pelo ritmo e rima quase nos faz perder o ponto. E não é uma instância isolada. Apenas nos últimos 100 versos do poema (que tem 915) olha o que consigo contar: “visit, i've/inquisitive”, “want here/frontier”, “last her/plaster”, “ins-and-outs/thin sand doubts”, “guarantees/arrant ease”, “went trickle/ventricle”, “inherit/prefer it”, “sorry on/morion”, “Duke rust/blue crust”, “travel in/javelin”, “indue/pinned you”, “ship sees/Gipsies”, “sperm oil/turmoil”, “news of her/Lucifer”, “wreathy hop/Aethiop”, “flaccid dent/accident”, “four-year-old/Berold”, “see-saw/Esau”. Isso porque fiquei com preguiça de copiar todos…

Acho que no geral, Dramatic Romances and Lyrics, como obra intermediária entre o inicio da carreira poética e a grande obra é uma boa introdução à poesia do escritor. Também possui um punhado de suas melhores obras, que às vezes são esquecidas em detrimento de outras, como Pictor Ignotus e France and Spain. Também é curioso notar que 3 dos 5 melhores poemas do livro (Pictor Ignotus, Saint Praxed's Church e The Confessional) são anti-católicos. Browning parecia ter um grande talento para falar mal da Igreja de Roma, hein, o que é ainda mais engraçado quando alguns dos principais admiradores sinceros do poeta (Chesterton, Raymond, provavelmente Pessoa e eu) foram católicos.

O último drama eu realmente não sei o que falar sobre. É simplesmente fraco. Os personagens sequer parecem reais, embora o evento seja histórico, aparenta mais ser uma projeção de Luria, o personagem principal, assim como todos os outros personagens. De certo modo, isso é um monodrama, mas não é poético, tem base dramática muito frágil e não convence nem como história. O ponto mais grave é que, embora tudo no drama esteja com a finalidade de desenvolver e construir Luria como personagem, nada temos de construído em seu caráter. Ao que tudo indica, o próprio poeta não gostava muito da obra, de modo que eu também me isento da responsabilidade de gostar dela também. Como dizia Auden, faz mal para o caráter falar mal de livros ruins sem nenhuma qualidade. E completo: ainda mais um de um autor tão genial como Robert Browning.

Ah, não tem mais nota... esse Blog está morto, e não tenho interesse em ressuscitá-lo.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Lamentações de Jeremias - Anônimo

Mais um livro lido da Bíblia Cristã, dessa vez para o desafio Literário, em sequência à leitura do Livro de Jeremias, lido em Fevereiro. Esse é um dos menores livros da primeira parte, e não é própriamente histórico, mas construído em cima de um acontecimento histórico e catastrófico para o povo hebreu, que foi a destruição da nação de Israel e exílio na Babilônia. Já é um hábito, mas só para alertar vai o tão repetido aviso:
Alerta importante: Eu estou lendo os Lamentações de Jeremias como um texto LITERÁRIO, não RELIGIOSO. Qualquer personagem, acontecimentos e até mesmo Deus estão sendo vistos aqui como PERSONAGENS e TRAMAS literários puramente. Não está em cheque a religião, mas somente a literatura.
Não consigo compreender como nunca havia lido esse texto. É um dos menores da Bíblia, situado entre os livros proféticos, no entanto ficaria mais bem situado entre os poéticos, assim como os Salmos de Salomão. Sem dúvidas é o livro mais poético e mais assustador que já li dessa compilação.

O livro começa falando sobre a destruição da terra de Judá, assim como vai narrando com poeticidade e crueldade incomum toda a desolação, material e espiritual, do povo. O assassinato dos reis, dos velhos; a expulsão, o exílio babilônico, a escravidão e fome do povo, entre outras catástrofes, narradas de modo quase apocalíptico. A narração, a todo o momento, vem coberta de uma crítica agressiva contra Deus, que causou toda essa destruição, escravização e violência.

O livro é profundamente ambíguo. Por um lado o povo compreende sua culpa, mas critica Deus pela punição e por não lhes dar ouvidos. O povo compreende a piedade e miséricordia divina, mas Deus também possui ira tão infinita quanto misericórdia. O próprio conceito de misericórdia vem como ira impiedosa contra os inimigos.
Quem poderá falar e fazer acontecer, se o Senhor não o tiver decretado?
Não é da boca do Altíssimo que vêm tanto as desgraças como as bênçãos?
Como pode um homem reclamar quando é punido por seus pecados?
Examinemos e submetamos à prova os nossos caminhos, e depois voltemos ao Senhor.
Levantemos o coração e as mãos para Deus, que está nos céus, e digamos:
"Pecamos e nos rebelamos, e tu não nos perdoaste.
Tu te cobriste de ira e nos perseguiste, massacraste-nos sem piedade.
Tu te escondeste atrás de uma nuvem para que nenhuma oração chegasse a ti.
Tu nos tornaste escória e refugo entre as nações.
Todos os nossos inimigos escancaram a boca contra nós.
Sofremos terror e ciladas, ruína e destruição".
Lamentações 3:37-47 (Nova Versão Internacional)
 Ou então:
Olha para eles! Sentados ou em pé, zombam de mim com as suas canções.
Dá-lhes o que merecem, Senhor, conforme o que as suas mãos têm feito.
Coloca um véu sobre os seus corações e esteja a tua maldição sobre eles.
Persegue-os com fúria e elimina-os de debaixo dos teus céus, ó Senhor.
Lamentações 3:63-66 (Nova Versão Internacional)
 É um dos mais contundentes livros sobre a ira de Deus e a ira contra Deus. Muitas de suas passagens são assustadoramente belas, o que é muito comum na escrita de textos em tempos difíceis, como o Salmo 137, as poesias de Paul Celan ou os textos do nosso período ditatorial.

Há no mínimo algumas coisas interessantes que mostram, entre outras coisas, a diferença radical entre o pensamento judaico e o cristão. Pode-se perceber por exemplo que não se culpava algum Diabo todo o mal do mundo, principalmente porque aos judeus a ideia de Diabo era estranha, no entanto, todo o mal do mundo era causado pela ira divina. Deus continha todo o bem, tal qual continha todo o mal. O mal era muitas vezes até necessário, não só como punição, mas como disciplina. Percebe-se nas Lamentações essa dualidade do mal.

As lamentações diferem significativamente de capítulo a capítulo, e como as traduções da bíblia, tradicionalmente, buscam conservar prioritariamente o conteúdo "conceitual" e pouco buscam traduzir o estilo (só sei de um caso diferente, que é as transcriações bíblicas de Haroldo de Campos), pouco podemos prever do belíssimo estilo original que esses poemas contém. Uma verdadeira pena.

Sem dúvida é um exelente livro, que deveria ser lido por todos, independente da crença religiosa ou arreligiosa. É fácil de ser encontrado, pois se encontra em qualquer Bíblia Cristã ou Tanakh judaico. O número de traduções é tamanha, e as diferenças entre elas também.

domingo, 15 de abril de 2012

Clepsydra - Camilo Pessanha

Para o DL desse mês eu pretendia ler um autor de língua portuguêsa das colonias orientais (particularmente Macau e Timor-Leste), mas apesar da língua, simplesmente não consigo achar nenhum livro de escritores como José Silveira Machado e Venceslau de Morais (de Macau), ou Fernando Sylvan e Luís Cardoso de Noronha (do Timor-Leste). É incrível a incomunicabilidade entre os países lusófonos, apesar de falarem a mesma língua... é mais fácil ter acesso a um livro de um escritor sueco que de um escritor de Macau.

Acho que quase todos conhecem Camilo Pessanha, que é um dos mais representativos escritores de língua portuguesa. Era leitura obrigatória na época que fiz vestibular, mas como nunca leio o que sou obrigado a ler deixei de mão. Ainda bem, pois ele é um escritor incrível.

Nasceu em Portugal, mas trabalhou e morreu em Macau, de onde escreveu a maior parte de seus poemas. Sua verdadeira inspiração também adquiriu em Macau: o ópio. Camilo Pessanha é um caso particularmente interessante, seu livro (Clepsydra) foi lançado enquanto o poeta ainda vivia, e o título foi por ele escolhido, mas nunca chegou a ler seu livro e nem ao menos sabia que poesias havia nele. Foi organizado por outra pessoa, e como o poeta só escrevia drogado, nem sabia ao menos o que escrevia. Como poeta da escola simbolista, é muito prório escrever drogado...

A morte e a alucinação são temas super recorrentes no livro, desde seu primeiro poema (Inscripção), que é um ótimo exemplo da poética do autor:
INSCRPÇÃO
Eu vi a luz em um paiz perdido.
A minha alma é languida e inerme.
Oh! Quem podesse deslisar sem ruido!
No chão sumir-se, como faz um verme…
O livro é dividido em duas partes: Sonetos e Poesias. Nos Sonetos, Camilo mostra-se um grande sonetista da língua, como se observa nesses dois sonetos:
Esvelta surge! Vem das aguas, nua,
Timonando uma concha alvinitente!
Os rins flexiveis e o seio fremente…
Morre-me a bocca por beijar a tua.

Sem vil pudôr! Do que ha que ter vergonha?
Eis-me formoso, môço e casto, forte.
Tão branco o peito!—para o expôr á Morte…
Mas que ora—a infame!—não se te anteponha.

A hydra torpe!… Que a estrangulo… Esmago-a
De encontro á rocha onde a cabeça te ha-de,
Com os cabellos escorrendo agua,

Ir inclinar-se, desmaiar de amor,
Sob o fervor da minha virgindade
E o meu pulso de jovem gladiador.
Quem polluiu, quem rasgou os meus lençoes de linho,
Onde esperei morrer,—meus tão castos lençoes?
Do meu jardim exiguo os altos girasoes
Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?

Quem quebrou (que furor cruel e simiêsco!)
A mesa de eu cear,—tabua tôsca de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
—Da minha vinha o vinho acidulado e fresco…

Ó minha pobre mãe!… Não te ergas mais da cova,
Olha a noite, olha o vento. Em ruina a casa nova…
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.

Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais.
Alma da minha mãe… Não andes mais á neve,
De noite a mendigar ás portas dos casaes.
E em poesias se encontram algumas das mais famosas do poeta, como as belíssimas "Arcadas do Violoncelo"...

Para quem gosta dos poetas simbolistas, Camilo Pessanha fica entre os melhores, talvez melhor até que nosso Cruz e Sousa (alguns vão considerar isso uma blasfêmia). Sua poeticidade é vigorosa, seu estilo é bem definido, sua poética é formalmente rigorosa, com alguns tour de force que nos parecem bastante naturais. Enfim, um dos maiores poetas da língua portuguesa.

Nota do Elaphar: 9,6
Edição Lida: PESSANHA, Camilo. Clepsydra. Projeto Gutenberg, disponível em: http://www.gutenberg.org/cache/epub/3498/pg3498.html.

domingo, 8 de abril de 2012

Antologia do Conto Húngaro (Org. e Trad. Paulo Rónai)

Mais uma leitura para o Desafio Literário de 2012, e o tema desse mês é Escritor Oriental. ... Alguns devem estar se perguntando porque diabos escolhi uma antologia de contos húngaros como literatura Oriental se, como todos devem saber, a Hungria fica no centro da Europa,. ao lado da Áustria e outros países como a Romênia e Ucrânia. Lógico que não perguntei para a equipe do DL a validade de minha escolha (descaso esse que me faz pensar que um dia ainda vou ser expulso do desafio...), e agora vou explicá-la.

Questões como orientalidade vs ocidentalidade são muito defíceis de por um ponto final. Na resenha passada mostrei um desses problemas, mais próprio da poesia, que é a multiplicidade de vozes resultante de um processo tradutório. Outros problemas podem aparecer, no caso de um artista nascer em um lugar mas ser artisticamente de outro (como o caso do húngaro Lizst, que nem ao menos sabia falar a língua de seu país, ou no caso da nossa Clarice Lispector, ou no caso do poeta português Carlos de Oliveira, nascido em Belém), ou ainda mais grave é do autor possuir a influência de dois lugares distintos (como Nabokov, Beckett, ou Eliot)  ou até mesmo pertencer ora a um lugar, oura a outro (como o Vieira português e o Vieira brasileiro, ou o Stephan Zweig austríaco e o Zweig brasileiro, ou o Rilke alemão e o Rilke francês... etc...). O que tenho percebudo nas resenhas desse desafio é uma série de escritores nascidos em países do extremo oriente (principalmente Japão), mas que pertenceram de fato (socielmente, espiritualmente, linguísticamente e, por quê não, literariamente) a outro país, geralmente de lingua inglesa. Nacionalidade envolve muito mais que lugar de nascimento, não fosse assim não teríamos escritores alemães e austríacos nascidos em Praga ou na Romênia ou escritores brasileiros nascidos na Ucrânia.

Agora, o que tem a Hungria de oriental? Tudo e nada! Para que a escolha possa ser compreendida, deve-se tomar algumas lições de história, genética e linguísticas, e como estou meio sem tempo, vou resumir ao máximo. Todos devem conhecer as histórias dos Hunos, que foram um povo oriental (da região que corresponde a China e Mongólia) que fez o maior estrago no ocidente na Era Romana. Os magiares vieram junto com os hunos, e se estabeleceram no lugar (alguns Húngaros acreditam que os magiares são descendentes dos próprios hunos). Portanto, o povo magiar é um povo geneticamente oriental, e a língua húngara, apesar do alfabeto latino, é, como se é de esperar, também uma língua oriental, da família de línguas uralicas. Se considerarmos a teoria linguística das línguas uralo-altaicas, o húngaro é do mesmo tronco das línguas turca, japonesa, coreana e das diferentes línguas da mongólia (daí o fato de que em húnguaro o sobrenome é dito antes do prenome, no caso do tradutor seria Rónai Pál ['honai 'pa:l], abrasileirado para Paulo Rónai). Portanto, os Húngaros são etnicamente e linguísticamente provenientes da Asia, porém deslocados ao centro europeu onde possuem um sério conflito identitário entre oriente e ocidente. Por um lado tentam preservar a sua cultura, por outro a aspiração ocidental. Conhecer a cultura, a história e a literatura da Hungria é conhecer o cerne do problema Ocidente/Oriente.

E convenhamos, a história da Hungria é uma das mais poéticas do mundo: povo oriental vivendo em meio a uma cultura estranha, cristanizada à força, esmagada politicamente pela Áustria, posteriormente pela Alemanha e supostamente libertada pela URSS, o que fez uma série de chagas nesse povo. Diga-se de passagem, alguns dos melhores contos desse livro relatam direta ou indiretamente o conflito identitário entre ocidente e oriente, ou os conflitos políticos e incoerência social.

O número de contos nesse livro é bem grande (30), tanto quanto as variedades de temática e estilo, o que torna muito difícil falar sobre todos eles. Ainda assim vou tentar ao menos escrever uma linha sobre cada conto. Os autores estão em ordem cronológica de nascimento, e é curioso que os últimos escritores morreram praticamente todos no mesmo período (1944-1945), no final da ocupação nazista.


O primeiro escritor é um representante do romantismo literário, e seu conto (Divertimento Forçado) é interessante por mostrar a pretenção da nobreza húngara ao ocidentalismo, já que o barão (personagem principal) mistura locuções francesas e abusa de galicismos no seu discuraso, e apesar disso, acaba entrando em contato com um ambiênte completamente húngaro, diferentemente do ambiente nobre que era mais propriamente parisiense ou vienense. Provavelmente  o autor não tinha em mente esse conflito ocidente/oriente como ponto importante da sua obra, diferente de Ady Endre, que é bem posterior, que em seu conto intitulado Chabachef, O assassino relata um homem que é dois, um Ocidental parisiense e um Oriental tradicional, sendo que um desses homens faz coisas que o outro jamais sonharia; é uma narrativa que todos deveriam ler.

Os dois contos de Mikszáth Kálmán são de ordem cômica e irônica, mas demonstram um grande conhecimento do interior dos seres humanos. O primeiro conto é uma resposta à teoria literária (não sei por que quase todo escritor odeia os críticos literários), enquanto o segundo  é uma divertida história tragicômica de um médico tentando convencer um paciente a amputar seu braço para sobreviver; pode parecer frívolo, mas a narrativa é muito divertida, profunda e bem construída. Gárdonyi Géza aparece na antologia com dois contos bastante diferentes, um mais mítico-alegórico, o outrocom uma carga de significado maior, e ambos bem diferentes, aparentemente, do que seria o estilo normal do escritor em seus romances históricos O Homem Invisível e Estrelas de Eger. Szomory Desö é talvez o mais ocidental da coletânea, mas não o único, e é um tanto tagarela; seu conto definitivamente não me cativou.

Heltai Jenö é um escritor alegre e também um tanto sombrio, que viveu muitos anos. Apesar dos dois contos dele serem bons (particularmente o A Morte e o Médico), não chega a ser um escritor genial, além de sua personalidade ser fraca; é muito francês, e infelismente, inferior à muitos franceses também. Ady Endre é dos maiores escritores húngaros, e seu conto, como já foi dito, merece grande destaque por retratar com genialidade o conflito oriente/ocidente dentro da sociedade húngara. Krudy Gyula é uma grata surpresa nesse livro, seu conto Uma das Histórias do Soldado Raso Harras Rudolf é incrível, e um anacronismo moderno que deveria colocar esse entre as pérolas da contística mundial; é talvez o melhor conto da coletânea.

Os dois escritores que se seguem (Molnár Ferenc e Móricz Zsigmond) mostram mais profundamente o homem húngaro, particularmente o despossuído. Zsigmond é o melhor dos dois, e seus 3 contos são obras primas, de um naturalismo moderado e bem estruturado. Bárbaros figura entre os melhores contos do livro. Podemos compreender muito da cultura do país por estes contos, e essa cultura nos parece muito antiquada, ao nosso olhar ocidental, o que mostra um grande atraso da chegada do mundo "capitalista ocidental" em algumas regiões da hungria, que mais parecem feudos medievais, ao mesmo tempo que as grandes cidades parecem uma nova Viena.

Bíró Lajos é um escritor original e interessante, mas seu conto fica meio apagado em relação a outros do livro. Kaffka Margit é a única mulher do livro, e ainda por cima descendente de tchecos. Seu conto fala da pobresa melancólica, sem perspectivas, enquanto o humorista Kosztolányi Desö já é bem mais otimista, apesar de sarcástico e irônico, e aparece com cinco contos na antologia, todos eles aparentemente sem um foco na narrativa, mas na em uma ideia ou concelho, quase uma coda em seus contos. Destaque para Auréola Cinzenta e Aventura Búlgara.

Szép Ernö é dito como intraduzível, e o próprio tradutor diz que escolheu um conto que não é dos melhores de sua produção em respeito à "impossibilidade" de verter outros. Apesar de tudo, seu conto Murglics mostra-se de qualidade.

Karinthy Friges é escritor alegre, outro humorista, e até satirista, e seus três contos se mostram muito agradáveis de se ler. Molnár Ákos tem como biografia uma das histórias mais comoventes do livro, mas seu conto é um tanto alegre (apesar de que não deveriamos rir) e, junto de Pap Károly (também morto no ódio nazista) escrevem dois dos contos mais bem realizados do livro (Um Almoço e Música, respectivamente). Mais do que a qualidade literária, a temática dos interesses e opressão, além de exploração em diferentes esferas, são os temas dos dois contos, sendo o primeiro uma narrativa do chefe em relação aos empregados, que devido uma incompreensão é quase anedótico, e o segundo mostra a exploração familiar, que faz um pai querer, sem sucesso, vender o filho por álcool. Os dois contos através do riso da situação mostram graves incoerências e atrocidades da sociedade. Ambos figuram entre os melhores contos. Mesmo valor social possui o conto de Gelléri Andor Endre, que poderia muito bem ser escrito no Brasil sem problemas.


Os dois contistas e contos que faltam (O Criminoso de Márai Sándor e Madelon, a cachorra de Szerb Antal) são de grande valor literário, mesmo sem ser propriamente sociais ou propriamente "húngaros" (no sentido nacionalista). O criminoso recebe destaque devido ao trabalho metalinguístico e bom aproveitamento dos clichés da literatura policial, e como paródia do gênero é a mais bem realizada que conheço.

Por fim, o que posso dizer sobre a edição? 3 dos maiores nomes das letras nacionais assinam esse livro: Paulo Ronai (organização, estudo, tradução e notas), Guimarães Rosa (introdução) e Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira (revisão); ou seja, não se pode reclamar de nada. É um trabalho feito com amor, e a capa, apesar de simples, exemplifica muito bem a "alma" do livro. Os problemas do livro são só os que são comuns à toda antologia e à todo livro de uma língua muito diferente da nossa: a diferença da qualidade dos textos, a apresentação do escritor por "amostragem", na maioria das vezes imprecisa, a vontade de querer ler mais do mesmo autor e saber que não possui nada ou dele publicado (dos escritores aqui presentes só sei do livro Os Meninos da Rua Paulo de Molnár e O Homem Invisível de Gárdonyi publicados no Brasil), e, por fim, a dificuldade de pronunciar, e por conseguinte memorizar, a maioria dos nomes próprios.

Recomendadíssimo, apesar de difícil de achar, é um livro indispensável para se ter em casa.

Nota do Elaphar: 9,8
Edição Lida: RÓNAI, Paulo (org). Antologia do Conto Húngaro. tradução e notas de Paulo Ronái. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1958.

terça-feira, 20 de março de 2012

Les Mains D'Orlac (Première Partie) - Maurice Renard

Não consigo compreender como condenaram, no Brasil, a obra de Maurice Renard ao esquecimento. Não há um único livro desse autor publicado no Brasil, e além da obra dele estar em domínio público é uma obra que povoa o pensamento popular, mesmo que indiretamente. Não há razão, já que se for considerar a obra desse escritor como medíocre e/ou sem grande público consumidor, o mesmo poderia ser dito de Maurice Leblanc, que enche as prateleiras de nossas livrarias.

Maurice Renard foi um escritor de histórias fantásticas e de ficção científica do final do século passado e início do presente. Podem não conhecer seu nome, mas suas criações são, direta ou indiretamente, repetidas na cultura popular, como máquinas de encolher ou transplante de mãos, que é o caso da presente narrativa. Les Mains D'Orlac é a história de um pianista que sofre um acidente ferroviário tem as mãos destroçadas, e após passar por um transplante de mãos coisas estranhas acontecem, já que mão era de um assassino. Todos conhecem alguma citação à essa história, mesmo que seja o célebre episódio do Chapolin colorado quando transplantam a mão de uma bailarina. Esse livro possui ao menos 4 adaptações cinematográficas, e já assisti o filme alemão.

Existe uma grande dificuldade para ler esse livro: o francês, dado a inexistência de versão brasileira. Para um estudante indisciplinado e autodidata da língua, é muito difícil ler um texto completo, apesar dos conhecimentos no idioma. O excesso abusivo da palavra "Mains" é um tanto irritante, e confunde um pouco a leitura.

Li só o primeiro lvro, contendo a história do acidente e da cirurgia, mas não conta a história dos acrimes e do desfecho. Acho que não vou ler ainda a segunda parte, então fica para a próxima.

A história e narrada por um jornalista investigativo, que deseja fazer um livro-reportagem sobre o acontecido, o que dá um quê de verossimilhança na narrativa. Não sei se é pelo meu desconhecimento no francês, mas acho que o narrador possui um interesse demasiado na esposa do personagem título. De qualquer modo, a história começa com um mal pressentimento de Rosine Orlac, e posteriormente com o acidente do marido.

Próximo da morte, Stéphen Orlac é levado para Cerval, o melhor cirurgião da frança, e é por intermédio desse cirurgião que Orlac é salvo e, posteriormente, faz o macabro transplante de mãos. Há outros personagens na narrativa, como o pai de Stéphen, que não vai ver o filho por preferir a sua reunião espírita.

A perte mais legal do livro, ou pelo menos a que mais gostei, foi quando chegam os seguradores do marido e Rosine percebe a importância das mãos para a vida de Stéphen, e fica atordoada e vai falar a Cerval:
– C’est moi, maître : Mme Orlac. J’ai oublié de vous dire… Les mains… Mon mari… C’est Stéphen Orlac, le pianiste. Alors, les mains, docteur, sauvez-les ! Il faut les sauver à tout prix, vous comprenez !… Comment va-t-il ?
On répond très posément :
– M. Orlac, petite madame, ne va ni mieux ni plus mal. Il a bien supporté la première intervention. Toujours sans connaissance. Ce qui domine notre affaire, c’est que le blessé puisse affronter l’opération de demain. Pour le moment, il est, si j’ose dire, imprégné de sérums. C’est une fleur coupée dans un vase plein d’eau. Une fleur qu’il s’agit de replanter. Nous en sommes là. La contusion au cerveau, voilà le hic. Le reste est secondaire, y compris les mains. Je ne puis vous assurer que d’une chose, c’est que tout sera fait de ce qui est faisable, et que j’emploierai tout mon pouvoir à sauver l’artiste avec l’homme.
Aí se pergunta, o que acontecerá? Cadê os homicídios em Série?

Isso só no segundo livro, que vai narrar os acontecimentos pós cirurgia, as mudanças e pesadelos em Orlac e os crimes que seguem a mão misteriosa. Não sei se por influênciaa do filme, mas acho que Orlac não se torna assassino, e sim outra pessoa aproveita os acontecimentos para cometer uma série de assassinatos e culpar as mãos. É uma pista que nos dá, levando em consideração que o capítulo de número 11 da segunda parte se chama "Confession" e o 13 se chama "Souricière". De quaquer modo só dá para saber lendo o segundo livro.

É difícil avaliar a linguagem do livro, por estar escrito em outra língua. O que pude perceber é o clima sombrio estilo noir, um tanto cliché, mas já deu origem à bons livros, particularmente de literatura policial e ficção científica, e nesse caso em particular, dos dois juntos. O filme e o texto são muito diferentes, de história e de nome dos personagens, além de ser um crime só no filme, e não vários.

Esse livro foi lido para o Desafio Literário de 2012. Apesar do tema ser Serial Killer, esse livro só narra o início da vida do suposto serial killer, de como sofreu o acidente e da cirurgia que dá origem (ou não) a uma série de crimes que acontecerá posteriormente. Não sei se vai dar tempo ainda de eu ler a segunda parte do livro para o desafio, mas faço um apelo para as editoras: traduzam e publiquem esse livro em português!!!

Nota do Elaphar: 7,9

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Pigmalião - George Bernard Shaw

Gosto muito de obras teatrais, particularmente Shakespeare. Só mesmo o Brasil ainda não possui um gênio indiscutível no Teatro. A Inglaterra tem Shakespeare, a frança tem Dumas, a Alemanha tem Hölderlin e Brecht, Portugal tem Gil Vicente. Nós temos Qorpo Santo e Antônio José (o Judeu), que são duas obras inacabadas, e alguns bons dramaturgos modernos, mas nos falta um "clássico genial" do gênero.

Divaguei e não cheguei em Bernard Shaw, que é um grande dramaturgo irlandês, que nasceu em uma época em que os irlandeses escreviam melhor que os ingleses.

Esse livro possui duas coisas que admiro: a intertextualidade desde o título e um personagem inusitado. Pigmalião é uma figura mitológica que teria sido um artesão que, ao construir uma estátua tão perfeita, se apaixona pela própria obra. Mas a história contada no livro não é a de Pigmalião mas de Higgins, um professor de fonética extremamente descortês e hilário.

A comédia se passa quando Higgins aceita uma aposta de transformar uma florista, Eliza Dolittle, em uma dama da realeza mudando sua fala Cockney. O aprendizado, o pai de Eliza, o tratamento "VIP" dado por Higgins são alguns dos pontos de maior graça da peça que, apesar do humor, possui muito de crítica social. Shaw é assumidamente um autor didático, e sua obra possui sempre uma finalidade de modificação do pensamento social. Apesar de tudo, a obra é grandiosa (não literalmente, já que é um texto pequeno) e popularíssima.

A tradução de Millor Fernandes é um exemplo de tradução. Millor já havia mostrado suas qualidades ao verter para o português brilhantemente A Megera Domada de Shakespeare, e esse trabalho com o texto de Shaw, de muito maior dificuldade, mostrou-se incrível. É muito difícil uma tradução de comédia manter a graça do texto fonte, já que a maior parte do humor está no trabalho com a linguagem, e não na narrativa. O trabalho de tradução de Millor é esplêndido.

Minha parte favorita é quando Eliza disse que não gosta do modo como Higgins trata-a, e compara com o do Coronel Pickening, que trata uma florista como se fosse duquesa, e Higgins, para rebater, afirma que possui o mesmo comportamento, tratando uma duquesa como se fosse uma florista.

O filme possui uma famosa adaptação cinematográfica (com o título de My Fair Lady, que acho que não possui nome próprio no Brasil, se tiver deve ser Minha Bela Dama), que aparentemente é um bom filme (só assisti metade), e peca só em uma coisa: é um musical americano. Sério! por quê os EUA não contratam atores que, de fato, saibam cantar para atuar em seus musicais? De qualquer modo, parece valer a pena assistir.

Esse livro foi lido para o Desafio Literário de 2012. É um livro fácil de ser encontrado em qualquer livraria por fazer parte da coleção L&PM Pocket. Não sei se a tradução do Millor pode ser encontrada em outra coleção (de formato grande). Com louvor esse livro entra, junto com Lolita e A Volta do Parafuso, no hall dos livros que recebem a nota máxima por esse blog.

Nota do Elaphar: 10

Edição Lida: SHAW, George Bernard. Pigmalião. Trad: Millor Fernandes. Porto Alegre: L&PM Pocket.

Esaú e Jacob - Machado de Assis

A literatura, de um modo geral, gosta da figura dos gêmeos. Muitos escritores se dedicaram a escrever sobre personagens que eram gêmeos idênticos, e na maioria das vezes, esses personagens eram extremamente unidos e harmônicos, e quando a história era amorosa, se apaixonavam pela mesma pessoa. Porém no que talvez seja o maior patrimônio literário da cultura ocidental (Bíblia Sagrada Cristã) os gêmeos costumam ser descritos de forma um pouco mais agressiva, como competidores (como é o caso de Esaú e Jacó), e isso se estende aos outros personagens fraternos do livro (José e seus irmãos). Partindo da narrativa bíblica Machado de Assis cria o seu livro (que fica um pouco apagado em meio à Memórias Póstumas, Dom Casmurro, Histórias sem Data e Papéis Avulsos) que é a vida dos gêmeos Pedro e Paulo contada pelo conselheiro Ayres.

A obra faz par com Memorial de Ayres, mas distingue-se dela em narrativa, estilo e personagens. Pedro e Paulo são gêmeos que, à semelhança de Esaú e Jacó, brigaram dentro da barriga da mãe, e desde então não chegaram à um arranjo. A obra começa com a visita da mãe dos meninos a uma vidente, que, sibilina, prevê apenas "cousas futuras" e afirma que os filhos brigaram ainda no ventre. A mãe, impressionada dá uma grande esmola na rua, depois vão à um velório. Algo interessante na obra machadiana são as reviravoltas e simetrias da obra, já que a previsão é algo que acompanha todo o livro, a esmola aparece novamente ao final, assim como o enterro, ambas de formas surpreendentes.
O doutor foi à estante e tirou uma Bíblia, encadernada em couro, com grandes fechos de metal. Abriu a Epístola de São Paulo aos Gálatas, e leu a passagem do capítulo II, versículo 11, em que o apóstolo conta que, indo a Antioquia, onde estava São Pedro, "resistiu-lhe na cara".
Santos leu e teve uma idéia. As idéias querem-se festejadas, quando são belas, e examinadas, quando novas; a dele era a um tempo nova e bela. Deslumbrado, ergueu a mão e deu uma palmada na folha, bradando:
— Sem contar que este número onze do versículo, composto de dois algarismos iguais, 1 e 1, é um número gêmeo, não lhe parece?
— Justamente. E mais: o capítulo é o segundo, isto é, dois, que é o próprio número dos irmãos gêmeos.
Mistério engendra mistério. Havia mais de um elo íntimo, substancial, escondido, que ligava tudo. Briga, Pedro e Paulo, irmãos gêmeos, números gêmeos, tudo eram águas de mistério que eles agora rasgavam, nadando e bracejando com força. Santos foi mais ao fundo; não seriam os dois meninos os próprios espíritos de São Pedro e de São Paulo, que renasciam agora, e ele, pai dos dois apóstolos?... A fé transfigura; Santos tinha um ar quase divino, trepou em si mesmo, e os olhos, ordinariamente sem expressão, pareciam entornar a chama da vida. Pai de apóstolos! e que apóstolos! Plácido esteve quase, quase a crer também, achava-se dentro de um mar torvo, soturno, onde as vozes do infinito se perdiam, mas logo lhe acudia que os espíritos de São Pedro e São Paulo tinham chegado à perfeição; não tornariam cá. Não importa; seriam outros, grandes e nobres. Os seus destinos podiam ser brilhantes; tinha razão a cabocla, sem saber o que dizia.
— Deixe às senhoras as suas crenças da meninice, concluiu; se elas têm fé na tal mulher do Castelo, e acham que é um veículo de verdade, não as desminta por hora. Diga-lhes que eu estou de acordo com o seu oráculo. Teste David cum Sibylla.
— Digo, digo! escreva a frase.
Plácido foi à secretária, escreveu o verso, e deu-lhe o papel, mas já então Santos advertira que mostrá-lo à mulher era confessar a consulta espírita, e naturalmente o perjúrio. Referiu ao amigo os escrúpulos de Natividade e pediu que calassem tudo.
— Estando com ela, não lhe diga o que se passou entre nós.
Saiu logo depois, arrependido da indiscrição, mas deslumbrado da revelação. Ia cheio de números da Escritura, de Pedro e Paulo, de Esaú e Jacó. O ar da rua não espanou a poeira do mistério; ao contrário, o céu azul, a praia sossegada, os montes verdes como que o cercavam e cobriam de um véu mais transparente e infinito. A rixa dos meninos, fato raro ou único, era uma distinção divina. Contrariamente à esposa, que cuidava somente da grandeza futura dos filhos, Santos pensava no conflito passado.
 Os jovens crescem e a mãe possui problemas ao lidar com os filhos, que vivem brigando. É interessante que os irmãos Pedro e Paulo não são verdadeiramente diferentes em opinião e temperamento, antes iguais, só que ambos têm uma tendência muito forte de entrar em conflito com o outro, assim como o Pedro e o Paulo bíblicos. Machado maneja muito bem esses conflitos familiares internos e essas pseudo-diferenças.

Como o habitual do estilo do autor, a metalinguagem se faz muito presente, e enquanto o narrador tece a história, traça-se também uma íntima relação de produção de sentidos entre leitor-autor-texto-sociedade. A linguagem da obra é o que faz machado ficar extremamente vivo entre nós. Esaú e Jacob é uma obra grandiosa, e só não comento mais sobre o livro por conta dos Spoillers. Outros personagens que chamam atenção são Flora (que desconfio ser uma paixão, de certo modo pedófila, do Ayres), Ayres, Natividade, Custódio (da Tabuleta Velha, que é um episódio anedótico da obra) entre outros.

Esse livro foi lido para o Desafio Literário do mês de Fevereiro, e é facilmente encontrado em qualquer livraria, qualquer editora e em todos os formatos, e por estar em domínio público pode ser facilmente baixado legalmente da internet. Particularmente, acho um charme ler as edições mais antigas, que conservam a grafia original. Citação acima tirada do site do MEC.


Nota do Elaphar: 9,4

Edição Lida:
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Esaú e Jacob. São Paulo: W.M. Jackson Editores, 1950, 432p. (Obra Completa de Machado de Assis Vol.8)

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Livro de Jeremias - Anônimo

É a segunda vez que leio um texto da grande compilação chamada de Tanakh pelos judeus e de Antigo Testamento pelos cristãos. E pela segunda vez coloco a autoria como anônima, apesar de que muitos religiosos consideram que esse livro teria sido escrito pelo profeta Jeremias ou ditado por este ao seu auxiliar Baruc (ou Baruque ou Baruch). Uma pena a coisa não ser tão simples assim. As redações sucessivas, partes históricas posteriores, fragmentaridade do discurso, as diferentes vozes discursivas, oposição de ideias e semelhanças com diversos outros textos anteriores e posteriores acabam indicando autoria múltipla, como a pós-exílica (nos dois capítulos finais) e da Obra Histórica Deuteronomista. Para agravar, há ao menos duas versões bem diferentes do livro que são aceitas e coexistem: o livro de Jeremias do texto massorético e da septuaginta.
Alerta importante: Eu estou lendo o Livro de Jeremias como um texto LITERÁRIO, não RELIGIOSO. Os profetas, reis, acontecimentos e até mesmo Deus estão sendo vistos aqui como PERSONAGENS e TRAMAS literários puramente. Não está em cheque a religião, mas somente a literatura.
Existem grandes dificuldades, para um cristão ou judeu, de se ler algum texto sagrado como literatura. A primeira delas é a leitura dogmática e muitas vezes forçada de certas passagens. Lembro de algumas leituras bizarras que alguns me tentaram passar goela abaixo. Outro problema é a questão da veracidade, onde as diversas leituras (muitas delas de natureza textual problemática) são vistas como verdade absoluta e acabam gerando conflitos interminaveis. Jeremias em especial fornece outra dificuldade: a montagem quase aleatória de muitos fragmentos, que não é nem cronológica nem temática, e acaba gerando algumas dificuldades de leitura no sentido de organizar a cronologia dos fatos.

Jeremias é de origem humilde, e foi profeta durante o reinado de 3 reis: Josias, Jeoaquim e Zedequias, sendo que esses nomes se alteram um pouco de versão para versão. Continua a história até depois do exílio na babilônia. As profecias de Jeremias são importantíssimas para a história bíblica, pois sua previsão de libertação é importante para a história de Daniel e ao profetizar um salvador da família de Davi acaba sendo pedra de toque para o início do livro de Mateus no Novo Testamento, que justifica genealogicamente o salvador como Cristo. Apesar de possuir os dois últimos capítulos sobre a libertação judaica e a queda babilônica, Jeremias não viveu para ver esses acontecimentos, e a flexão passada aponta uma inclusão em redação posterior.

Muito do que aparece no livro de Jeremias é recorrente na história dos judeus: idolatria provocando a ira de Deus, que entrega o seu povo na mão de invasores até o arrependimento. Apesar do tema recorrente, esse livro é especialíssimo, por isso, muito querido. Não há como se mapear a influência que esse livro teve no imaginário e na literatura universal.

Deus avisa Jeremias que o povo de Judá será destruído por outros povos, por ter pecado contra o Senhor:
Valeu-te este castigo tua malícia, e tuas infidelidades atraíram sobre ti a punição. Sabe, portanto, e vê quanto te foi funesto e amargo abandonar o Senhor teu Deus e não ter tido mais temor algum de mim - oráculo do Senhor JAVÉ dos exércitos.
Jeremias 2:19
[...]
Do seu covil parte um leão, e qual demolidor de nações se põe a caminho, saindo de seu refúgio para transformar em deserto a tua terra, e as cidades em desolação, onde ninguém mais habitará.
Revesti-vos, pois, de saco, chorai e gemei, pois que a tremenda cólera do Senhor não se afastou de nós.
Jeremias 4:7-8
Jeremias, por sua piedade pede a Deus várias vezes para que perdoe o povo:
Minhas entranhas! Minhas entranhas! Sofro! Oh! as fibras de meu coração! O coração me bate, não me posso calar! Ouço o som das trombetas e o fragor da batalha.
Anunciam-se desastres sobre desastres, todo o país foi devastado. Foram de repente destruídas minhas tendas; num instante, meus pavilhões.
Até quando verei o estandarte, e ouvirei o som da trombeta?
Está louco o meu povo; nem mais me conhece. São filhos insensatos, desprovidos de inteligência, hábeis em praticar o mal, incapazes do bem.
Olho para a terra: tudo é caótico e deserto; para o céu: dele desapareceu toda a luz.
Olho para as montanhas e as vejo vacilar; e as colinas todas estremecem.
Olho: já não há nenhum ser humano; todas as aves do céu fugiram.
Olho: tornaram-se desertos os campos; todas as cidades foram destruídas diante do Senhor, ante a fúria de sua cólera.
Porque toda a terra será devastada - oráculo do Senhor -, mas não a exterminarei completamente.
Eis a razão pela qual a terra cobriu-se de luto, e o céu, lá no alto, revestiu-se de negror. Pois que eu disse, e assim decretei: não voltarei atrás e não me retratarei.
Ao grito de: Cavaleiros! Arqueiros!, toda a terra desandou em fuga. Lançaram-se nos esconderijos e galgaram rochedos, as cidades foram abandonadas e os habitantes desapareceram.
E tu, devastada, para que revestir-te de púrpura, engalanar-te com ornamentos de ouro, e alongar-te os olhos com pinturas? Em vão tentas ser bela; desprezam-te os amantes. É tua vida que odeiam.
Ouço gritos como os da mulher ao dar à luz, gritos de angústia quais os do primeiro parto. São os clamores da filha de Sião; geme e ergue as mãos: Desgraçada de mim! Desfaleço ante os algozes.
Jeremias 4:19-31
Nesse início do livro, Deus se aparenta muito com o Javé do Gênesis, parecendo assustadoramente humano. É importante perceber que a piedade de Jeremias vai se esvaíndo quando seus irmãos conspiram contra ele.

O povo de Israel, como criança, faz o que é habitual: rejeita a palavra de Deus. É importante o fato da presença de falsos profetas profetizando em nome de Deus, dizendo que não virá praga e mal nenhum. Do meio para o final do livro há muitas reflexões sobre a profecia, algumas delas muito legais. Uma muito boa é quando Jeremias é condenado pelo povo (cap 26), e lembram-se os precedentes dos profetas que também anunciaram desgraças e foram condenados ou poupados, o que resulta na prisão de Jeremias mas salva sua vida. Há também uma mensagem específica contra esses profetas em 23:9-32. Outra passagem legal em relação à profetas é a seguinte:
[o]s profetas que nos precederam a mim e a ti anunciaram, contra numerosos países e reinos poderosos, guerra, fome e peste.
Quanto ao profeta que predisse a felicidade, somente quando seu oráculo se realizar, poder-se-á saber se ele é realmente um enviado do Senhor.
Jeremias 28:8-9
Esse livro possui uma série de metáforas como a do pode de barro (18:1-12) e a dos cestos de figo (cap 24). Muito interessante também é a influência que esse livro tem sobre outros textos, tanto bíblicos (como 23:5, que posteriormente será retomado em Mateus para justificar o "reinado" de Cristo), quanto literários (o famoso Bálsamo de Gileade de Poe) e músicais (se não ouviram ainda a Sinfonia No.1 "Jeremiah" de Bernstein não sabem o que é música).

Faltam ainda as outras coisas do livro: Jeremias fala sempre a palavra de Deus e nunca o ouvem (nem o povo, nem o rei; nem antes da dominação babilônica nem depois), os babilônicos dominam Judá e todas as suas cidades, depois o povo foge para o Egito mesmo com o alerta de Jeremias, e por fim o Egito cai. No fim do livro se fala da destruição da Babilônia, mas isso é posterior. Interessante notar a relação que há entre as odes finais do livro e o Salmo 137 (ambos sobre a destruição babilônica).

O livro é cheio de nuances que, se fosse tentar expicar todas, escreveria páginas e páginas e não terminaria. Há mais uma coisa que chama atenção é a referência aos escritos de Baruc que foram perdidos ou destruídos. Baruc era auxiliar de Jeremias e escrevia o que o profeta ditava (e não é necessariamente o que o livro contém), e há no livro um apelo para a escrita.

As traduções do texto são muitas e variadas. A Almeida e a NTLH são provavelmente as mais conhecidas, apesar de que a NTLH peca por ser escrita em péssimo português. Outras edições incluem a Traducção Brazileira, Ecumênica, Ave Maria, Pastoral e muitas outras. As citações acima são da versão Católica disponível em: http://www.bibliaonline.com.br/vc/jr/1, que não foi exatamente a versão lida.

Muitas outras coisas me chamaram atenção no livro, mas como não quero escrever um TCC (e a maioria dos leitores não querem ler um), dou minha resenha por encerrada e fica a dica da leitura do livro. Não é tão variado em histórias e dramas como outros livros históricos (como o Pentateuco, Juizes, Reis e Samuel por exemplo), mas é bem interessante também, apesar de que muitas repetições podem atrapalhar a leitura. Este livro foi lido para o Desafio Literário 2012.

Nota do Elaphar: 8,4

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Electra - Eurípides


Segundo livro de Eurípides lido, e muitas coisas novas podem ser ditas sobre este livro.

A primeira coisa legal é que Electra é um mito que parece ter sido um dos preferidos do dramaturgo, já que todos os grandes dramaturgos gregos escreveram uma Electra (Sófocles e Ésquilo por exemplo). Um possível motivo por essa preferência talvez seja o nível de violência da obra, além da não punição dos heróis.

Comparado a Alceste, Electra é um drama bem mais tradicional, apesar de que o desenvolvimento dos heróis não ruma à aniquilação, que é característica tradicional da tragédia. Uma típica obra ultra-violenta do teatro grego (que vai retornar em Shakespeare, por exemplo). Electra narra a história dos filhos de Agamemnon, que após a morte do pai (pelas mãos de sua esposa), acabam sendo perseguidos. Orestes, irmão de Electra, é exilado e perseguido, enquanto a Electra é forçada a casar com um pobre, tentativa de deixá-la "fora de circulação", e evitar que um possível herdeiro decida se vingar. Orestes volta e busca a vingança, e junto de Electra (a grande cabeça da história) armam um plano de assassinar o atual rei (Egisto, casado com Climnestra, ex esposa de Agamemnon) e sua mãe.

Agora o que é especial nesse nível é o grau de profundidade psicológica dos personagens, sendo o remorso e o medo bem desenvolvidos na trama. Outro ponto de destaque é a reflexão sobre a insanidade divina, pois Orestes muitas vezes pensa o quão insana foi a órdem de Apolo de assassinar sua mãe e o usurpador do trono. Por fim, a crueldade de Electra.

Coisas curiosas vieram com a leitura do livro. Uma delas foi a descoberta da história do Voto de Minerva, já que Orestes será julgado por seu crime e o juri se divide igualmente de um grupo a favor e outro contra, aí Minerva (ou Atenas) intervém e Oreste é julgado inocente. Também é dessa narrativa que surge o chamado Complexo de Electra, termo cunhado por Jung para descrever a forma feminina do Complexo de Édipo.

Enfim, uma grande obra que vale a pena ser lida. Não é tão especial como Alceste, porém é mais dinâmica. Essa leitura faz parte do Desafio Literário 2012. Aguardem a próxima leitura, que será uma grande surpresa (se agradável ou não não sei).

Nota do Elaphar: 8,8

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Alceste - Eurípides

Desculpem aos meus fãs, se é que possuo algum, pelo meu longo desaparecimento. Fiquei um pouco cansado de resenhar durante um tempo (na verdade, fiquei um pouco sem vontade de resenhar, e se não fossem alguns comentários animadores não voltaria). Apesar de sair no meio do desafio literário de 2011 (em parte, pois li os livros, só não os resenhei), decidi novamente tentar concluir o desafio, e fiquei surpreso ao saber que fui leitor Ouro ainda no desafio anterior. Enfim, vamos ao que interessa....

É incrível como, apesar de ser fã dos clássicos greco-latinos, nunca havia lido Eurípides... Já possuia esse livro há tempos, só que nunca o tinha colocado em minhas prioridades de leitura... grande erro!

Simples: Eurípides talvez seja o mais inovador do tradicional teatro grego... é difícil presumir a musicalidade de seus versos e seu peso em sua língua original, hoje morta, mas acredito no que dizia Aristóteles sobre o poeta: Talvez Eurípides seja o melhor e mais trágico dos poetas gregos, apesar de escrever pior.

Alceste é uma obra teatral sem par em sua época... é uma obra que Shakespeare poderia assinar em sua época sem sentir-se envergonhado, aliás, há muito mais entre Eurípides e Shakespeare do que sonha nossa vã crítica literária. Não me deterei em diferenças formais a respeito da história, mas algumas que são mais interessantes: a presença do amor como elemento importante descrito na obra, e não como acessório para a história; os diálogos quase sofistas, onde diferentes pontos de vista criam diferentes verdades retoricamente (diálogo de Admeto e Féres, ou Hércules e Admeto); a presença de elementos filosóficos pré-socráticos como de Anaximandro ou Protágoras ou Heráclito; e um desfecho que vai contra o fado, o que parece incompatível com a tragédia, que tem no fado o seu principal elemento condutor. Essas são algumas das coisas que nunca vi na literatura anterior a Dante, exceto (em parte) no Tanakh.

A história é das mais conhecidas: a hora da morte chegou para Admeto, rei de Féres, mas Apolo consegue convencer a morte a levar quem optar por morrer no lugar do rei. Apesar de inúmeros amigos e pais em idade avançada, ninguém aceita morrer no lugar do rei, apenas sua mulher Alceste. A morte é impiedosa e leva Alceste embora, aí a tragédia está consumada.

Mas esse livro não é uma tragédia comum, e a narrativa acaba por não se cumprir completamente. Por acaso, Hércules está passando pelo local e se hospeda na casa de Admeto, que não nega a hospitalidade, e é o mesmo Hércules que derrota a morte e traz Alceste novamente para seu marido. Sem dúvidas, um desfecho que não é habitual em tragédias.

O mais interessante nessa tragédia é a matéria humana da composição, até mesmo na parte divina, e a figura da mulher. Falta um pouco da habitual violência exacerbada presente na literatura grega, mas as presenças inovadoras suplantam essa "carência", e diminuem a monotonia da óbra, que é interessante e profunda sem ser tão dinâmica quanto as tragédias de Ésquilo. Livro mais que indicado.

A respeito da tradução de J. B. de Mello e Souza, acho que talvez seja problemática por vários fatores: mudanças absurdas de registro, confusão onomástica de nomes gregos e latinos, tradução não versificada, e para piorar é fácil de ser encontrada em edição espúria e plagiada pela Martin Claret, e por outro lado, sua edição digna é difícil de ser achada por ser antiga (Jackson editores).

Essa leitura faz parte do Desafio Literário do mês de Fevereiro.

Nota do Elaphar: 9,2

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Um Erro Emocional - Cristovão Tezza

Desculpem novamente a demora... os trabalhos da UFPA estão me tirando todo o tempo que tinha livre para falar de literatura à toa. Esse livro (que comprei no início do ano) me foi indicado por uma amiga que possui um gosto literário muito parecido com o meu (com algumas pequenas divergências), o que já era uma pre-disposição para eu gostar do livro.

Existe uma temática recorrente na literatura brasileira contemporânea, que é a problemática da vida atual em relação ao passado, as diferenças entre o cotidiano atual e as lembranças (nem sempre felizes) e traumas passados. Nessa temática inclui-se o livro Tempos Férteis de Beatriz Moreira Lima e também este, só que de formas bastante diferentes.

Cristovão Tezza é um dos escritores novos mais renomados da atualidade, com um sucesso incomum de venda e de crítica especializada (desconsidero a crítica jornalística e midiática por, na maioria das vezes, não valer nada). Seu livro "O Filho Eterno" ganhou uma série de prêmios importantes como o Jabuti, o Portugal Telecom e o da APCA. "Um Erro Emocional" é o livro mais recente do escritor.

Antes de falar do livro propriamente dito, me permitam mais uma divagação sobre a técnica do Fluxo de Consciência (técnica muito usada nesse livro). Muitos pensam que essa técnica é bem recente ou vanguardista, mas na verdade é um recurso estilístico bem velho (ao que me consta, usado pela primeira vez por Laurence Sterne). Acho particularmente interessante como um recurso que era considerado "Erudito" ou "Intrincado" passou a ser tão popular e apreciado por muitos leitores que não possuem a mínima proficiencia de leitura (compreensão e interpretação de um texto literário). Para confirmar basta ver o número de livros utilizando essa técnica atualmente, e a popularidade de escritores do cânone que usam e abusam desse recurso (como Clarice Lispector). Um Erro Emocional é basicamente composto sobre o fluxo de conciência dos personagens, mas há características marcantes que não o fazem um livro vulgar.

"Cometi um erro emocional", assim inicia-se o livro, em uma situação absurda e gratúita o protagonista do livro (um escritor chamado Paulo Donetti) entra na casa da protagonista (Beatriz, e fan nº1 do escritor) confessando o seu erro (emocional) e sua paixão pela personagem. A partir desse acontecimento, a narrativa se desenvolve entre um copo de vinho e outro (e eu um breve momento um chá).

Mais importante do que o que é dito e o que é feito, é o que não é dito, o que deveria ser feito, o que poderá vir a ser feito e o que aconteceu. A narrativa está incluinda em um processo temporal complexo, onde pretérito perfeito e presente ligam-se intimamente, além da presença do mais-que-perfeito e do futuro do pretérito. Definitivamente, esse não é um livro que se possa definir em algumas poucas palavras que cabem nessa resenha, portanto, acho que encerro aqui, recomendando seriamente a leitura desse livro, tanto por sua qualidade técnica, por sua profundidade psicológica e pela agradabilidade da leitura.

Esse livro é bônus do desafio literário do mês de Julho.

Nota do Elaphar: 9,2

Edição Lida:
TEZZA, Cristovão. Um Erro Emocional. Rio de Janeiro: Record, 2010, 191p.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Fausto - Goethe (Tradução de F. de Castilho)

Pintura de Eugène Delacroix
Estava quase pensando que já havia lido tudo o que havia de bom no genero teatral, mas sempre um texto novo pode nos trazer grandes surpresas. Goethe dispensa comentários: é o nome mais famoso da literatura alemã e um milagre na história da literatura, um dos poucos escritores que são geniais em todos os gêneros que escreve (no caso de Goethe os gêneros épico, lírico, dramático, novelístico, satírico, didático, epistolar e científico). A obra Fausto é de longe seu mais famoso trabalho, ao lado dos Sofrimentos do Jovem Werter, Wilhelm Meister e alguns poemas superfamosos como O Aprendiz de Feiticeiro (Der Zauberlehrling), O Erlkönig e a Dança Macabra (Totentanz).

O mito de Fausto é bastante recorrente na literatura (principalmente em língua alemã), e se baseia em uma figura histórica. Fausto era um sábio que pouco se sabe sobre sua vida, e mitologicamente crê-se que Fausto fizera um pacto com o demônio. Marlowe foi o primeiro a representa-lo em um texto de qualidade literária, mas no romantismo alemão centenas de escritores escreveram sua versão do mito. Mais recentemente temos a versão de Fernando Pessoa (Fausto, uma tragédia Subjetiva) e a versão de Thomas Mann (Doktor Faustus). Sem sombra de dúvidas, o Fausto goethiano é o mais famoso, e foi base para inúmeras adaptações (como a abertura de Wagner, a ópera francesa e o episódio do Chapolin Colorado).

Fausto é uma tragédia, contendo todos os elementos para ser considerada como tal, mas muito se critica quanto a obra Fausto ser ou não ser teatral. Em primeiro lugar há um "Prólogo do Autor", onde o autor fala sobre si e a obra, em seguida vem um "Prólogo no Palco" bastante metalinguístico, onde o Poeta, o Empresário e o "Gracioso" (Lustige Person, ou seja, bobo, palhaço) discutem sobre a criação e apresentação da peça. Além desses dois elementos fora do comum (que não são muito próprios do teatro), há um Intermezzo tão fragmentário e estranho (a lá Sousândrade) que sua encenabilidade é questionável. Desconsiderando esses elementos, a peça é absurdamente enorme para um texto teatral (a primeira parte da tragédia tem mais de 300 páginas), as instruções dramáticas parecem que foram escritas para ser lidas e não encenadas, e Fausto possui algumas cenas que fariam a cena da "Imolação dos Deuses" (de Götterdämmerung de Wagner) parecer uma peça escolar. Soma-se a tudo isso a dificuldade de compreender o texto, mas vamos por partes...

O livro começa com um soberbo prefácio de Otto Maria Carpeaux (a minha edição da Jackson Editores), que ajuda a esclarecer muitos pontos da obra que podem parecer obscuros, além de mostrar as absurdas diferenças entre "Fausto", uma tragédia" e "Fausto, segunda parte da tragédia". Lastimavelmente o livro não contém a "segunda parte" (que é uma obra autônoma), já que Castilho não a empreendeu traduzi-la. A esplicação de Castilho é simples: "extravagâncias absurdas [da segunda parte] são muito mais repugnantes ao bom senso". É importante notar que Castilho não entendia uma frase de alemão ao traduzir o Fausto, e portanto, traduziu por interposição, o que em poesia não é totalmente recriminável.

A obra começa no já citado "Prólogo no Palco", e segue para um "Prólogo no Céu" (que castilho considera já como início da peça [Quadro I]). Um coro de Anjos canta, quando o demônio (Mefistófeles) conversa com o Senhor, que lhe pede informações sobre o Fausto. Aí Mefistófeles resolve propor um desafio ao Senhor, que é prontamente aceito.
      MEFISTÓFELES
Quer Vossa Majestade uma apostinha?
Verá se também este se não perde,
uma vez que me deixe encaminhá-lo.
      O SENHOR
Deixo, enquanto for vivo. Onde há cobiças,
é natural o errar.
     MEFISTÓFELES
                              Muito obrigado.
Pois co’os vivos também é que me eu quero;
com defuntos embirro; o meu regalo
é tentar caras rechonchudas, frescas;
sou como o gato: de murganho morto
não faço caso; o meu divertimento
é correr e arpoar aos que me fogem.
     O SENHOR
Como queiras. Permito-te que o tentes.
Se lograres caçá-lo desbaptiza-o,
e inferna-o muito embora. Mas, corrido
fiques tu in æternum, se confessas
que o bom, dado que errar às vezes possa,
nunca nos sai da estrada, a recta, a nossa.
     MEFISTÓFELES
Bom. Não lhe há-de tardar o desengano,
Ganhei tão certo a aposta, como é certo
chamar-me eu Mefistófeles. Se eu vingo
na empresa, a palma do triunfo é minha.
Há-de se regalar de comer terra,
como a tia serpente.
 Depois parte para o inicio da tragédia propriamente dita, com um famoso monólogo de Fausto. Segundo Carpeaux, os jovens decoram passagens inteiras dos monólogos do Fausto na alemanha.
      FAUSTO (dessocegado, sentado numa poltrona de sola e pregaria de cobre, com a cabeça fincada nas mãos, e os cotovelos na mesa de estudo, na qual derrama luz frouxa um candeeiro aceso.)
Ao cabo de escrutar co’o mais ansioso estudo
filosofia, e foro, e medicina, e tudo
até a teologia... encontro-me qual dantes;
em nada me risquei do rol dos ignorantes.
Mestre em artes me chamo; inculco-me Doutor;
e em dez anos vai já que, intrépido impostor,
aí trago em roda viva um bando de crendeiros,
meus alunos... de nada, e ignaros verdadeiros.
O que só liquidei depois de tanta lida,
foi que a humana inciência é lei nunca infringida.
Que frenesi! Sei mais, sei mais, isso é verdade,
do que toda essa récua inchada de vaidade:
lentes e bachareis, padres e escrevedores.
Já me não fazem mossa escrúpulos, terrores
de diabos e inferno, atribulados sonhos
e martírio sem fim dos ânimos bisonhos.
[...]
Percebe-se que o Fausto de Goethe é inquieto, não quer saber muito, mas sim TUDO, missão fadada ao fracasso. Desde o início da narrativa me identifiquei muito com o personagem, entretanto, essa identificação vai se estinguindo no decorrer da narrativa (ainda bem). Segue-se uma bizarra cena onde Fausto conversa com um Espírito. Entra Wagner, sai o espírito. Wagner é um outro tipo de sábio, aquele que tanto Fausto quanto Goethe deploravam. Depois de mais um monólogo de Fausto, o protagonista tenta suicídio, mas ao ouvir sons da igreja ao lado (que não aparece no palco) desiste da ideia por conta dos sons lhe trazerem lembranças.

As próximas passagens são entre Fausto e Wagner numa rua (com um pequeno prólogo dos passantes), aí é que podemos compreender as diferenças de filosofia e objetivos dos dois personagens. Posteriormente, mais um monólogo de Fausto (é, ele fala mais sosinho que o Hamlet de Shakespeare), que está acompanhado de um cachorro. Nesse monólogo há a outra passagem famosa de Fausto, onde o personagem transforma o "No princípio era o verbo" ("Im Anfang war das Wort!") das escrituras em "No princípio era o Ato" ("Im Anfang war die Tat!", para Castilho Ação). O cachorro começa a metamorfosear-se (atrapalhando o monólogo) para enfim transformar-se em Mefistófeles. Segue-se o primeiro dos muitos diálogos entre Mefistófeles e Fausto.

É extremamente interessante a caracterização que Goethe dá ao diabo. Mefistófeles é bastante esperto, mas não aparenta. Mefistófeles é irônico, seco, até certo ponto cheio de graça. Depois de alguns diálogos, Mefistófeles fará uma proposta à Fausto: Fausto será jovem e o Mefistófeles o servirá na terra, porém, se Fausto ficar satisfeito Fausto deverá servir Mefistófeles no inferno.
    MEFISTÓFELES
                                        Então já pode
no pacto conchavar-se. O que eu lhe afirmo
é que estes dias que passarmos juntos
lhe hão-de por minhas artes dar tais gostos
quais os não teve alguém.
     FAUSTO
                                         Pobre diabo,
que hás-de tu dar-me? O espírito de um homem
como eu sou, foi jamais compreensível
aos da tua relé? Tens iguarias
que não matam a fome; oiro que fulge,
mas que igual ao mercúrio, escapa aos dedos;
jogo em que é certa a perda; uma beldade
que até nos braços meus soltando arrulhos,
já está piscando o olho ao meu vizinho;
pompas de glória, um fumo!
                                             O que eu preciso,
se o tens, são frutos a pender de copa
sempre frondosa, e que antes de apanhados
não tenham já por dentro o podre e os vermes.
      MEFISTÓFELES
Bem; tudo isso há-de ter; conte comigo
Desde agora, amiguinho, à rédea solta.
Folgar e mais folgar! Leva de escrúpulos!
Tudo quanto bem sabe, é permitido.
       FAUSTO
Se eu me acosto jamais em fofa cama,
contente e em paz, que nesse instante eu morra!
Se uma só vez com falsas louvaminhas
chegares por tal arte a alucinar-me
que eu me agrade a mim próprio; se valeres
a cativar-me com deleites frívolos,
súbito a luz da vida se me apague.
Vá! queres apostar?
      MEFISTÓFELES
                                   Se quero! Aposto.
       FAUSTO
Aperto mais: Se me chegar momento
a que eu diga: «Demora-te! És formoso»
então aos teus grilhões entrego os pulsos;
então a morte aceito; os sinos dobrem;
já livre estás de mim. Dessa hora avante,
quede o relógio! Caiam-lhe os ponteiros!
Acabou-se-me o tempo.
        MEFISTÓFELES
                                        Olhe o que afirma,
que entre nós outros nada esquece.
         FAUSTO
                                                         Embora!
Não me obriguei de leve. O que eu padeço
não é escravidão? Ser logo servo
de outro ou de ti, que monta?
      MEFISTÓFELES
                                                Às suas ordens,
desde já. Tem a nata dos serventes
para este bródio de barrete fora,
meu querido Doutor!
                                  Mais uma nica.
Há morrer e viver. É bom primeiro
pôr o preto no branco: um tudo-nada;
duas regritas só.
      FAUSTO
                            Que é! Papeladas
até no inferno, rábula! Bem mostras
entender pouco do que seja um homem.
[...]
Aqui surge a figura do pacto com o demônio assinado com sangue, tão copiado por muitos outros textos. Segue-se uma cena onde Mefistófeles fala a um rapazola que busca o conhecimento científico. É interessante o desprezo que Mefistófeles tem pelas ciências e pelo "progresso". Apenas agora começa a aventura de Fausto e Mefistófeles.

A primeira parada da dupla é em um bar de jovens. Fausto fica horrorizado com a "brutidade" dos jovens no bar e Mefistófeles prega uma peça nos jovens (não tão bizarra quanto as peças que o diabo de O Mestre e a Margarida prega nos habitantes de Moscou, mas ainda assim levemente divertida). Fico imaginando alguem representando essa cena, e como fazer a gota do líquido que os jovens bebem à voro transformar-se em chama do inferno e depois minguar. Claro, não é tão difícil de representar quanto a próxima cena, onde Fausto irá beber um líquido de onde sai labaredas.

A próxima cena é na casa de uma bruxa. Mefistófeles levará Fausto para beber uma poção, que fará o protagonista se apaixonar por Margarida (que aparecerá mais a frente). Essa cena é interessantíssima em cada parte e aspécto.
     FAUSTO
Mas porque há-de ser logo a preferida
a tal mondonga velha? Não podias
preparar-me tu próprio a beberagem?
     MEFISTÓFELES
Belo divertimento! Eu preferia
gastar o tempo em construir mil pontes.
Para arranjar os filtros desta casta
quer-se, além do saber, paciência e muita,
e atenção de anos largos; só co’o tempo
é que se alcança o fermentar completo
do líquido eficaz. Pois a quantia
d’ingredientes raríssimos! É certo
que o diabo é quem os sabe, e ensina tudo;
mas lá para os estar manipulando
é que não tem pachorra.
 Além dessa passagem, há muitas outras bem legais nessa mesma cena. A bruxa entra e não reconhece o diabo, que fica irado. Mefistófeles não quer ser chamado de Satanás pois esse nome "anda há já muito entre outros mil escritos/no volumoso ról das fábulas e mitos". A bruxa prepara a poção a fala expressões incompreensíveis (que lembra um pouco as Bruxas de Macbeth).
     A FEITICEIRA (empurra Fausto para dentro do círculo; e põe-se a ler no livro,
declamando com grande ênfase
)
Agora me explico,
Do um, dez fareis;
o dois deixareis;
o três uguareis;
e já sondes rico.
Lançar quatro fora.
Dos cinco e dos seis,
sete e oito fareis.
São estas as leis,
e andai-vos embora.
E os nove são um;
e os dez são nenhum.
E tenho acabada,
segundo cumpria,
toda a tabuada
da feitiçaria.
     FAUSTO (a Mefistófeles)
Ela estará com febre? A modo que extravaga.
     MEFISTÓFELES
Ai! de pouco se admira. Inda por ora a saga
do intróito não passou; e todo o calhamaço
vai no mesmo teor. [...]
     A FEITICEIRA (continuando)
A potência da ciência
que anda oculta em névoa escura,
só revela a sua essência
ao mortal que a não procura.
     FAUSTO
Que absurdo nos diz ela? A tantos disparates
já se me oira a cabeça; oitenta mil orates
não doidejavam mais.
 Depois de beber a poção (e um grito mudo de triunfo de Mefistófeles: "Que tal!/Coa dose que tomou, qualquer mulher que aviste/vai julgá-la outra Helena./ Ah sábio, alfim caiste!"), Fausto avista Margarida e por ela se apaixona. Fausto exige a Megistófeles a presença de Margarida e o demônio usa-se de retórica para fazer Fausto de bobo. Segue-se um quadro no quarto de Margarida, onde Mefistófeles esconde uma caixa de Jóias. Margarida chega no quarto e canta aquele que é um dos poemas mais famosos de Goethe em língua portuguesa, com 7 traduções diferentes até onde minhas pesquisas foram efetivas. A Canção do Rei de Tule, que também é uma ária da ópera francesa Fausto. Esse poema já havia sido publicado em outro livro de Goethe, e é republicado em Fausto. Isso também contribui para aumentar a aparência de que Fausto é um grande recorte e colagem da produção de Goethe em mais de 30 anos (que demorou compondo essa obra). Eis a canção na tradução de Castilho:
Reinava em Tule algum dia
um bom Rei tão fino amante,
que até morrer foi constante
à dama com quem vivia.

À hora do passamento
deixou-lhe ela um vaso d’oiro,
que foi do Real tesoiro
o mais falado ornamento.

Punham-lho sempre na mesa;
só por aquele bebia;
e o choro que então vertia
causava a todo tristeza.

Vendo o seu termo chegado,
repartiu pelos herdeiros
os bens, té aos derradeiros,
excepto o vaso adorado.

Foi isto em jantar de mágoas
que El-Rei deu à fidalguia,
em torre herdada que havia
ao rés das marinhas águas.

Como El-Rei houve bebido
o seu último conforto,
co’o braço já quase morto
levanta o vaso querido,

e por não deixá-lo ao mundo,
da janela ao mar o atira.
Ondeia o vaso, revira,
enche-se, e desce ao profundo.

No mesmo triste momento
em que o vaso se abismava,
o Rei seus olhos cerrava,
soltando o último alento.
 E aqui em uma versão um pouco mais decente, feita por Antero de Quental:
Era uma vez um bom rei
Em Tule, essa ilha distante,
Ao morrer, deixou-lhe a amante
Um copo de oiro de lei.

Era um copo de oiro fino
Todo lavrado a primor;
Se fosse o cálix divino
Não lhe tinha mais amor.

Seus tristes olhos leais
Não tinham outra alegria:
E só por ele bebia
Nos seus banquetes reais.

Chegada a hora da morte
Põs-se o rei a meditar
Grandezas da sua sorte,
Seus reinos à beira-mar.

Deixava um rico tesoiro,
Palácios, vilas, cidades;
De nada tinha saudades,
A não ser do copo de oiro.

No castelo da devesa,
Naquelas salas sem fim,
Mandou armar uma mesa
Para o último festim.

Convidou sem mais tardar
Os seus fiéis cavaleiros,
Para os brindes derradeiros
No castelo à beira-mar.

Então, vazando-a de um trago,
E com entranhada mágoa,
Pôs nas ondas o olhar vago
E atirou a taça à água.

Viu-a boiar suspendida,
'Té que as ondas a levaram
Os olhos se lhe toldaram,
E não bebeu mais na vida!
E a minha tradução ruim para o primeiro verso (seguida do "original em parênteses"):
Em Tule vivia um rei (Es war ein König in Thule)
Que, fiel, a sua dama (Gar treu bis an das Grab)
Uma taça de ouro em lei (Dem sterbend seine Buhle)
Deixou-lhe na eterna cama. (Einen goldnen Becher gab.)
Tá legal, chega de poesia lírica. Me desculpem as divagações, é que sou tão fã de poesia que me deixei levar... Voltando ao drama...

Pulando uma série de episódios menos importantes (mas nunca sem importância, mas como isso é uma resenha não posso falar de todos os inúmeros episódios de Fausto), Mefistófeles arruma uma maneira de aproximar Margarida e Fausto, aproveitando a morte do marido de Marta (amiga de Margarida), pretendendo usar Fausto como testemunha da morte (apesar de nenhum dos dois terem estado no local da morte, não duvido de Mefistófeles, afinal, de morte ele entende). Há entre Fausto e Mefistófeles um diálogo que ainda está muito atual:
     FAUSTO
É previdente a mulherzinha;
mas então claro está que antes da coisa,
temos de ir ver em Pádua a sepultura.
     MEFISTÓFELES
Santa simplicidade! O que é preciso,
é jurar que se viu,
     FAUSTO
                                Se não me alvitras
coisa melhor, gorado está o ajuste.
    MEFISTÓFELES
Beatíssimo varão! Gosto do escrúpulo.
Pois nunca nunca, em toda a sua vida,
deu testemunho falso?
                                    Que de vezes
não haverá, com magistral entono,
coração firme e intrépido semblante,
declarado o que é Deus! aberto o arcano
do mundo e das míriades dos entes
que o povoam! do homem, co’o sem conto
de afectos, de paixões, de pensamentos,
que n’alma e coração lhe tumultuam!
Meta, bem dentro, a mão na consciência,
e diga-me se tinha dessas coisas.
mais noção que da morte do Espadinha?
     FAUSTO
És, foste, e hás-de ser sempre um mentiroso,
e um sofista de marca.
     MEFISTÓFELES
                                       É isso: ápodos,
porque antevejo o que o Doutor não pesca:
que amanhã, por exemplo, o escrupuloso
há-de enganar, jurando-lhe mil honras,
e amores mil, a pobre Margarida.
     FAUSTO
E a-la-fé que não minto em protestar-lhos.
[...]
Seque-se a conquista de Margarida. Mefistófeles também conquista Marta, o que não dá em nada e nem é falado na obra. Há um interessante diálogo sobre religiosidade, que, longe de ser puro apologismo ou sofisma é deveras interessante. Há um afastamente de algum tempo (o tempo da diegese da peça é algo muito dificil de se tira) entre Fausto e Margarida. É uma das partes de maior lirismo amoroso da obra. Os dois se reencontram e planejam cosumar o amor. Margarida conversa com outra amiga sobre isso, e a amiga repreende. Aí sai mais uma passagem que ainda se mantém bem atual e bem coerente com a cultura brasileira:
MARGARIDA, ()
(Tomando também da fonte o seu cântaro, e partindo-se com ele para casa, em direcção diversa da de Luisinha)
Também eu no meu tempo, em vendo moça errada,
logo a punha por monstro: a língua era uma espada,
e feita eu própria ré de atroz descaridade
benzia-me, e ficava impando de vaidade!...
E hoje... incursa no mesmo!!
(Após alguns momentos)
                                              Oh! Deus! mas quem podia
livrar-se de um prazer, que as pedras fundiria?
[...]
 Segue-se mais um poema de Goethe que não pertencia à fausto, e logo depois o monólogo de Valentim (irmão de Margarida, e não, não me esqueci de falar sobre ele, Valentim só aparece agora e só depois ele é apresentado como irmão de Margarida, sim, a leitura de Fausto é meio confusa), seguido do confronto entre Fausto (ajudado por Mefistófeles) e Valentim, que culmina na morte do segundo. A próxima cena é uma sombria cena naa Igreja, no funeral de Valentim, com a presença de espíritos.

As ultimas cenas são as mais estranhas da dramaturgia. Primeira é uma mistura caótica de personagens aparecendo e agindo como num baile. A outra cena é tão mais estranha está fora e dentro da peça (Áureas Núpcias de Oberon e Titânia - Intermezzo). E vocês pensavam que a poética ultrafragmentária surgiu apenas no modernismo? Essa passagem me lembra as decidas ao inferno do Guesa de Sousândrade.

E por fim, depois de um diálogo entre Fausto e Mefistófeles, Fausto entra na prisão para buscar a sua amada que foi presa por matar a mãe e o filho depois de enlouquecer (e não, também não esqueci de falar sobre isso). Essa cena é sombria e sublime. Termina com a dicotomia entre a condenação e a salvação. Termina a obra mas não a história de Fausto. O livro termina com um gostinho de quero-mais, entretanto, todos sabem que a "Segunda Parte da Tragédia" nada tem de ligação com a primeira, mas é uma série de mais outras passagens de incompreensível conexão definitiva para o nosso pensamento.

Fausto é uma Obra Prima e tem motivos para estar no cânone e influenciando o pensamento até os dias de hoje. Uma obra magnífica, embora difícil. A tradução de Castilho deixa muito a desejar no quesito "lirismo". O estilo de Castilho é falso, plástico, granítico. Há na tradução de Castilho algumas passagens magníficas, mas outras são tão de mal gosto que não merecem nem ao menos ser comentadas. Apesar de ser uma obra dramática, presta mais ao papel de ser "lida como teatro" do que "encenada como teatro". A nota do livro só é mais baixa pois analiso o livro como um todo (de produção gráfica, prefácio, conteúdo à tradução), e a tradução de Castilho deixou a desejar um pouco.

Esse livro é um livro bônus do Desafio Literário do mês de Junho. A tradução de Castilho pode ser adquirida gratúitamente no site do Domínio Público ou da Universidade de Aveiro. O livro pode ser achado facilmente em sebos e livrarias, em outras traduções. Há pelo menos 5 traduções integrais da primeira parte do Fausto em português (sem incluir uma do Fausto Zero [Urfaust] pela Christine Röhrig).

Nota do Elaphar: 9,6

Edição Lida:
GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto. Prefácio de Otto Maria Carpeaux. Trad: António Feliciano de Castilho. São Paulo: W. M. Jackson, 1960, 323p. XXXVp. (Clássicos Jackson, v.15)
Related Posts with Thumbnails