terça-feira, 24 de maio de 2011

Sonetos de Shakespeare (Trad: Milton Lins)

Essa edição e tradução dos Sonetos de Shakespeare é incrível e singular (e isso não foi um elogio). Esse livro foi uma grande polêmica em 2010 quando o escritor pernambucano recebeu a premiação da ABL pelas traduções do 4ºVolume de Pequenas Traduções de Grandes Poetas (depois para o conjunto da obra do escritor). O livro virou polêmica porque vários tradutores questionaram a qualidade das traduções do autor, e não foi qualquer tradutor invejoso não, foi ninguém menos que Denise Bottmann, Ivo Barroso e Jório Dauster.

Como sou fã incondicional dos Sonetos, logo busquei essa edição tão polêmica para ler e analisar. Afinal, é Shakespeare e não pode ser ruim certo? ... errado!

A capa e protetor de capa são belíssimos, uma produção ímpar, que somando-se ao corte da página e outros detalhes gráficos é um grande ponto forte dessa edição... mas ao ler o prefácio... vem minha primeira decepção. Milton Lins ao descrever a gênese dos poemas nem ao menos se preocupa com as informações que dá. Afirma categoricamente um posicionamento de difícil verificação como se fosse a única verdade sobre a história dos sonetos e do autor. Faz uma análise completamente incoerente da poética Shakespeariana, onde aponta que "[n]a leitura [dos sonetos] muitas vezes encontramos conclusões incongruentes ou sem sentido" (o que de certa forma, se aplica a ESSA tradução). O tradutor não deixa muito claro a sua proposta de tradução, que é feita ora em decassílabos ora em dodecassílabos com censura, sem explicação lógica de o que o faz traduzir soneto X em 10 sílabas e soneto Y em 12. O tradutor também afirma que logra em acrescentar ou subtrair ideias do "original", e é isso que vamos ver agora. Nem vou me dar ao trabalho de comentar o prefácio de Mário Marcio.

Ao chegar na primeira página com os sonetos traduzidos já vislumbramos um grande defeito: uma quadra aparece em português, seguida de uma quadra em inglês e outra em português. Essa disposição atrapalha muito a leitura, principalmente se o leitor não ler o texto em inglês. E logo no primeiro soneto já vislumbramos os problemas que vão perseguir todo o livro: o nonsense das traduções tanto se comparadas ao texto em inglês quanto se olhadas separadamente. Os dois primeiros versos do primeiro soneto são aceitáveis (Extenda-se a linhagem exemplar,/E que não morra a rosa da beleza), mas o terceiro verso visivelmente é criado unicamente para compor a rima ("Ao passo que o mais sábio não somar") que além de não fazer sentido nenhum, não tenho a menor ideia de onde ele tirou o texto fonte (por certo não é de: "But as the riper should by time decrease").

Não vou ser completamente injusto com Milton Lins, em um momento ou outro consigo vislumbrar um ou outro verso bem feito (como é o caso do dístico final do soneto III: "Mas se quiseres nunca ser lembrado/Morre solteiro - e morrerás dobrado"). Mas sejamos também realistas, nessa tradução encontramos muito mais equívocos, escolhas infelizes, erros de interpretação e outros dejetos do que uma boa tradução ou um bom poema.

Percebemos no decorrer da leitura que:
1 - O tradutor não possui muita intimidade com a língua inglesa:
          When I consider every thing that grows
          Quando eu considerar o que mais cresce (Soneto XV)
          As, to behold desert a beggar born,
          E mantenho deserto um pobre renascido, (Soneto LXVI)
2 - O tradutor não diferencia o inglês renascentista do inglês do sec XXI
         And that unfair wich farly doth exel:
         E o insatisfeito que também o excede. (Soneto V)
3 - O tradutor se preocupa unicamente com a rima e metro e nem liga para as palavras e imagens do poema inglês:
          Upon thy side against myself I'll fight
          Do teu lado e contrário, vou bater, (Soneto LXXXVIII)
          But mutual render, only me for thee
          E, em mútua entrega entre nós dois, se cobre. (Soneto CXXV)
4 - O tradutor não sabe o que é um péssimo verso:
          Sweet love, renew thy force; be it not said,
          Thy edge should blunter be than apetite,
          Amor, renova a força, e não a intriga;
          O fio é cego como a tua fome, (Soneto LVI)
5 - O tradutor usava algum alucinógeno ao verter alguns versos:
          Were 't aught to me I bore the canopy,
          Se tirar nota zero, eu furo o céu (Soneto CXXV)
          Let me not the marriage of true minds
          Ao casório não vou dos homens sabichões, (Soneto CXVI)
          Grant if thou wilt thou art belov'd of many,
          Teu talento é menor em teu visor, (Soneto X)

Alguma das escolhas do tradutor percebemos de pronto onde foi o erro, mas em outras não consigo imaginar de onde saiu a solução. Ah, e as citações de cima não foram escolhidas a dedo, mas sim aleatoriamente (já que estou com o livro ao lado).

Em geral não recomendo traduções completas de um livro de poesia. Em geral um livro de poesia que foi traduzido integralmente possui qualidades inferiores à outro que contenha apenas os poemas preferidos de um tradutor. Tradução de poesia significa muito mais do que conhecer a língua de partida e a lingua de chegada (principalmente essa) e compor poesia; traduzir poesia implica dedicação e identificação com os poemas. Isso pode ser percebido facilmente, por exemplo, ao comparar As Flores do Mal em tradução de Guilherme de Almeida (apenas alguns poemas) com a de Ignacio Moitta (integral). Com Shakespeare não é diferente, e eu recomendaria muito mais uma edição parcial (como a de Péricles Eugênio, Ivo Barroso, Bárbara Heliodora) do que uma integral (como a de Jerónimo de Aquino, Vasco Graça Moura entre outros).

Entretanto, se você quiser de fato ler TODOS os sonetos de Shakespeare na íntegra e não é fluente em inglês (mesmo se fosse, Shakespeare ainda é difícil), posso garantir que essa edição NÃO é recomendada. Poeticamente e tradutoriamente falando essa edição é demasiadamente falha. Entretanto, se você quiser mostrar a importância de uma boa tradução em uma aula ou para amigos, esse é um bom livro para servir de exemplo. De resto, vai a tradicional comparação entre um poema desse livro e dos outros que já foram resenhados:
É melhor ser um vil que um vil bem estimado;
Sem mais o ser, terás censuras por ter sido.
Justo o prazer perdido, assim então julgado
- Por sentimento, não; por algo deduzido.
Como algum falso olhar, por que outras sugestões
Em dar o seu apoio ao meu sangue convém?
Com o meu frágil pensar, são fracos espiões,
Que em suas decisões do mal mudam num bem?
Enfim, sou o que sou; e eles têm seu nível;
Por minhas confusões, as suas são contadas;
Eu fico em minha reta e eles no impossível;
Minhas ações no seu pensar não são mostradas.
    Ao menos no geral parâmetro de fera, -
    A humanidade é má, e na maldade impera
                      (Soneto nº 121 por Milton Lins, p.121)
A vileza é melhor que só a aparência dela,
Quando sua ausência é tida em conta de vileza.
A virtude se esvai, no meio onde se assela
De vil quem quer que tenha essa moral riqueza.
Por que o adulterado olhar dos outros há de
Meter-se a incentivar-me o gênio divertido,
Ou os meus fracos, se são mais fracos, em verdade,
Meus juízes, que acham mau quando por bom hei tido?
Não! não! Eu sou o que sou. Esses que se nivelam
Com os meus abusos os seus próprios reconhecem.
Estou certo e eles, pois, errados se revelam.
E ao seu pensar jamais minhas ações aquiescem.
    A menos que se negue uma feição humana,
    O mal é que governa os homens e os irmana.
                      (Soneto nº 121 por Jerónimo de Aquino, p.41)
É melhor ser mau do que por mau ser tido
Quando, não sendo, paga-se por ser
Perde o vil prazer de mau ter sido
Quem mal não sente e mau é dado a ver
Por acaso os normais, de olhos opacos,
Notariam brilho em meus excessos?
A fraqueza apontada pelos fracos
Que mal terminam onde eu bem começo?
Não. Sou o que sou. Se me condenam,
É pelos crimes dos quais são suspeitos
O que eu construo reto eles empenam
Em mentes tortas não cabem meus feitos
    A menos que o demônio imponha a crença
    De que todos são maus e que a maldade vença.
                      (Soneto nº 121 por Jorge Furtado, p.111)
Melhor ser mesmo vil do que por vil ser tido,
Quando não ser recebe a acusação de ser,
E o gozo, embora justo, fica assim perdido
Ante a condenação de alheio parecer!
Por que é que os outros, tendo o olhar adulterado,
Viriam me inflluir no sangue sensual?
Quanto espião, do que meu erro mais errado,
Em tudo o que acho bom entende ver o mal!
Oh não! eu sou o que sou; e aqueles que imperspícuos
Censuram meu deslize, apontam seu pecado;
Posso ser reto, já que tantos são oblíquos;
Nem por mentes de lama eu devo ser julgado,
    A menos que este mal sustentem ser verdade:
    A humanidade é má, e exulta na maldade.
                      (Soneto nº 121 por Péricles Eugênio)

Nota do Elaphar: WTF

Edição Lida:
SHAKESPEARE, William. Sonetos de Shakespeare. Trad: Milton Lins. Recife: S/E, 2005, XVp. + 154p.

3 comentários:

  1. aiaiaiaiai

    A do Jorge Furtado tá muito boa. É a única q dá pra entender.

    Mas traduzir poesia ¿pra quê, meudeusdocéu?

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  2. "Os dois primeiros versos do primeiro soneto são aceitáveis (Extenda-se a linhagem exemplar (...)".

    Como aceitável? "Extenda-se" é aceitável? :P

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  3. Raphael, tudo bem?
    Estou fazendo um trabalho de análise de tradução na faculdade, comparando traduções de Milton Lins e Ivo Barroso para Shakespeare. Estou no momento correndo atrás desse livro do Milton para análise, mas receio que possa demorar um pouco. E para minha infelicidade, o prazo é curtíssimo.
    Gostaria de saber, se não for pedir demais, se você poderia me enviar por e-mail um soneto traduzido pelo Milton, em que essas incoerências se façam gritantes (de preferência, um traduzido também pelo Ivo) E, se for ainda possível, uma foto ou cópia ou transcrição do prefácio para eu entender melhor o posicionamento do tradutor.
    Ou, ainda melhor, se souber de algum site que disponibilize a leitura do livro, seria de grande ajuda.
    Espero que não seja um incômodo e desde já, obrigado. Meu e-mail é o seguinte: pedro_mrd@hotmail.com

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