quarta-feira, 11 de maio de 2011

Ocidentais - Machado de Assis


Machado de Assis é, indiscutivelmente, um dos maiores nomes da literatura brasileira. Foi também um dos escritores mais completos, escrevendo em praticamente todos os gêneros: conto, romance, crônica, novela, teatro, libretto de ópera, critica literária, poesia, tradução, carta, discurso e textos jornalísticos. Apesar do tamanho da obra do mestre, seus textos são apreciados muito desigualmente hoje em dia; após a tríade Romance, Conto e Crônica, as outras obras de Machado ou não são nem conhecidas ou são consideradas de baixa qualidade em comparação à suas grandes obras (apesar do teatro ser um problema nacional naquela época).

Ocidentais é o último livro de poesias de Machado de Assis (lançado em seu volume de poesia completa) e também sofre o mesmo preconceito (pelas pessoas que ao menos sabem que Machado de Assis escreveu poesia). Apesar disso, algumas pessoas defendem ferrenhamente a habilidade poética superior de machado, como Câmara Jr. (um dos fundadores da linguística brasileira) que afirmava ser um absurdo não reconhecer a habilidade poética de Machado, ou José Veríssimo que afirmava que "Machado de Assis [...] desde o princípio se distinguira pela arte excelente dos seus versos" e que "[os poemas de Crisálidas] pressagiam o poeta perfeito das Ocidentais". Apesar dos esforços de Câmara Jr. e Veríssimo consagrou-se a ideia de que Machado de Assis é um mal poeta, o que o relegou ao abandono. É sobre o Machado poeta que vamos ver agora.

O nome Ocidentais não é por acaso, Machado queria mostrar as várias faces da poesia (canônica) ocidental, ou melhor, "as ocidentais", já que as diferenças entre as épocas e as nações são muitas. Há em Ocidentais quatro traduções bastante representativas e que influenciaram gerações e gerações de poetas e leitores: O Corvo de Poe (via Baudelaire), o solilóquio de Hamlet To be or not to be de Shakespeare, Os Animais Iscados da Peste de La Fontaine e o Canto XXV do Inferno de Dante. Apesar de traduções, esses quatro poemas são machadianos. Como exemplo temos "Eu, caindo de sono e exausto de fadiga, /Ao pé de muita lauda antiga,  / De uma velha doutrina, agora morta," que é uma dicção extremamente machadiana para "while I pondered, weak and weary / Over many a quaint and curious volume of forgotten lore —". A única tradução onde encontro o poeta "original" e não Machado é o famoso solilóquio hamletiano, mas isso se dá mais pela proximidade entre Machado e Shakespeare que pelo apagamento do tradutor.

Além da tradução de grandes ícones da literatura (Dante, Shakespeare, La Fontaine e Poe), há também poemas do próprio Machado para grandes poetas e pensadores. Nesse grupo se enquadram os poemas: Antônio José, Espinosa, Gonçalves Crespo, Alencar, Camões (4 sonetos), 1802-1885 (sobre os grandes inspirações e poetas da literatura) e José de Anchieta. Esse tipo de poesia era (e ainda é) muito comum, embora Machado não a soube manejar. A maior parte dessas poesias são enfadonhas e de baixo valor.

Mas o livro não se resume em textos dedicados e traduzidos. Os outros poemas do livro (difíceis de classificar) são da mais alta qualidade. Há ao menos dois poemas que são bastante famosos: Círculo Vicioso e Soneto de Natal. Apesar de famosos, muitos não sabem que foram escritas por Machado. Para conferir as poesias, vide bônus.

Esses outros poemas são extremamente variáveis de temática, estilo e influência. Alguns são levemente filosóficos (como o "Círculo Vicioso"), outros de temática clássica (como o quase parnasiano "O Desfecho"). Há também influencias romanticas e naturalistas (como "Mundo Interior" e "Uma Criatura") mas sem nunca chegar a tornar-se poema romântico e/ou naturalista ou qualquer outra escola. É terrível o fato de ainda se estudar no ensino médio Machado como romântico (1ª fase) e realista (2ª fase). Machado escreve suas Ocidentais fora do tempo e do espaço geográfico, misturando os estilos e influências. Ocidentais está em Domínio Público e pode ser lido, baixado e distribuído gratuitamente. Para ver o livro online clique aqui.

Nota do Elaphar: 9,5

Edição Lida:
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Ocidentais. Ministério da Educação. Texto-Fonte: Obra Completa, Machado de Assis, vol. III, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. Publicado Originalmente em: Poesias Completas, Rio de Janeiro: Garnier, 1901. <http://machado.mec.gov.br/images/stories/html/poesia/maps05.htm>

BÔNUS
CÍRCULO VICIOSO

Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
"Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!"
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

"Pudesse eu copiar o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela"
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:

"Mísera! tivesse eu aquela enorme, àquela
Claridade imortal, que toda a luz resume!"
Mas o sol, inclinando a rútila capela:

"Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vaga-lume?"
SONETO DE NATAL

Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno,—
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto... A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca.
A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"
O DESFECHO

Prometeu sacudiu os braços manietados
E súplice pediu a eterna compaixão,
Ao ver o desfilar dos séculos que vão
Pausadamente, como um dobre de finados.

Mais dez, mais cem, mais mil e mais um bilião,
Uns cingidos de luz, outros ensangüentados...
Súbito, sacudindo as asas de tufão,
Fita-lhe a água em cima os olhos espantados.

Pela primeira vez a víscera do herói,
Que a imensa ave do céu perpetuamente rói,
Deixou de renascer às raivas que a consomem.

Uma invisível mão as cadeias dilui;
Frio, inerte, ao abismo um corpo morto rui;
Acabara o suplício e acabara o homem.
TO BE OR NOT TO BE (SHAKESPEARE)

E mais nobre a cerviz curvar aos golpes
Da ultrajosa fortuna, ou já lutando
Extenso mar vencer de acerbos males?
Morrer, dormir, não mais. E um sono apenas,
Que as angústias extingue e à carne a herança
Da nossa dor eternamente acaba,
Sim, cabe ao homem suspirar por ele.
Morrer, dormir. Dormir? Sonhar, quem sabe?
Ai, eis a dúvida. Ao perpétuo sono,
Quando o lodo mortal despido houvermos,
Que sonhos hão de vir? Pesá-lo cumpre.
Essa a razão que os lutuosos dias
Alonga do infortúnio. Quem do tempo
Sofrer quisera ultrajes e castigos,
Injúrias da opressão, baldões do orgulho,
Do mal prezado amor choradas mágoas,
Das leis a inércia, dos mandões a afronta,
E o vão desdém que de rasteiras almas
O paciente mérito recebe,
Quem, se na ponta da despida lâmina
Lhe acenara o descanso? Quem ao peso
De uma vida de enfados e misérias
Quereria gemer, se não sentira
Terror de alguma não sabida cousa
Que aguarda o homem para lá da morte,
Esse eterno país misterioso
Donde um viajor sequer há regressado?
Este só pensamento enleia o homem;
Este nos leva a suportar as dores
Já sabidas de nós, em vez de abrirmos
Caminho aos males que o futuro esconde;
E a todos acovarda a consciência.
Assim da reflexão à luz mortiça
A viva cor da decisão desmaia;
E o firme, essencial cometimento,
Que esta idéia abalou, desvia o curso,
Perde-se, até de ação perder o nome.
1802-1885

Um dia, celebrando o gênio e a eterna vida,
Vitor Hugo escreveu numa página forte
Estes nomes que vão galgando a eterna morte,
Isaías, a voz de bronze, alma saída
Da coxa de Davi; Ésquilo que a Orestes
E a Prometeu, que sofre as vinganças celestes
Deu a nota imortal que abala e persuade,
E transmite o terror, como excita a piedade.
Homero, que cantou a cólera potente
De Aquiles, e colheu as lágrimas troianas
Para glória maior da sua amada gente,
E com ele Virgílio e as graças virgilianas;
Juvenal que marcou com ferro em brasa o ombro
Dos tiranos, e o velho e grave florentino,
Que mergulha no abismo, e caminha no assombro,
Baixa humano ao inferno e regressa divino;
Logo após Calderón, e logo após Cervantes;
Voltaire, que mofava, e Rabelais que ria;
E, para coroar esses nomes vibrantes,
Shakespeare, que resume a universal poesia.

E agora que ele aí vai, galgando a eterna morte,
Pega a História da pena e na página forte,
Para continuar a série interrompida,
Escreve o nome dele, e dá-lhe a eterna vida.

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