quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Esaú e Jacob - Machado de Assis

A literatura, de um modo geral, gosta da figura dos gêmeos. Muitos escritores se dedicaram a escrever sobre personagens que eram gêmeos idênticos, e na maioria das vezes, esses personagens eram extremamente unidos e harmônicos, e quando a história era amorosa, se apaixonavam pela mesma pessoa. Porém no que talvez seja o maior patrimônio literário da cultura ocidental (Bíblia Sagrada Cristã) os gêmeos costumam ser descritos de forma um pouco mais agressiva, como competidores (como é o caso de Esaú e Jacó), e isso se estende aos outros personagens fraternos do livro (José e seus irmãos). Partindo da narrativa bíblica Machado de Assis cria o seu livro (que fica um pouco apagado em meio à Memórias Póstumas, Dom Casmurro, Histórias sem Data e Papéis Avulsos) que é a vida dos gêmeos Pedro e Paulo contada pelo conselheiro Ayres.

A obra faz par com Memorial de Ayres, mas distingue-se dela em narrativa, estilo e personagens. Pedro e Paulo são gêmeos que, à semelhança de Esaú e Jacó, brigaram dentro da barriga da mãe, e desde então não chegaram à um arranjo. A obra começa com a visita da mãe dos meninos a uma vidente, que, sibilina, prevê apenas "cousas futuras" e afirma que os filhos brigaram ainda no ventre. A mãe, impressionada dá uma grande esmola na rua, depois vão à um velório. Algo interessante na obra machadiana são as reviravoltas e simetrias da obra, já que a previsão é algo que acompanha todo o livro, a esmola aparece novamente ao final, assim como o enterro, ambas de formas surpreendentes.
O doutor foi à estante e tirou uma Bíblia, encadernada em couro, com grandes fechos de metal. Abriu a Epístola de São Paulo aos Gálatas, e leu a passagem do capítulo II, versículo 11, em que o apóstolo conta que, indo a Antioquia, onde estava São Pedro, "resistiu-lhe na cara".
Santos leu e teve uma idéia. As idéias querem-se festejadas, quando são belas, e examinadas, quando novas; a dele era a um tempo nova e bela. Deslumbrado, ergueu a mão e deu uma palmada na folha, bradando:
— Sem contar que este número onze do versículo, composto de dois algarismos iguais, 1 e 1, é um número gêmeo, não lhe parece?
— Justamente. E mais: o capítulo é o segundo, isto é, dois, que é o próprio número dos irmãos gêmeos.
Mistério engendra mistério. Havia mais de um elo íntimo, substancial, escondido, que ligava tudo. Briga, Pedro e Paulo, irmãos gêmeos, números gêmeos, tudo eram águas de mistério que eles agora rasgavam, nadando e bracejando com força. Santos foi mais ao fundo; não seriam os dois meninos os próprios espíritos de São Pedro e de São Paulo, que renasciam agora, e ele, pai dos dois apóstolos?... A fé transfigura; Santos tinha um ar quase divino, trepou em si mesmo, e os olhos, ordinariamente sem expressão, pareciam entornar a chama da vida. Pai de apóstolos! e que apóstolos! Plácido esteve quase, quase a crer também, achava-se dentro de um mar torvo, soturno, onde as vozes do infinito se perdiam, mas logo lhe acudia que os espíritos de São Pedro e São Paulo tinham chegado à perfeição; não tornariam cá. Não importa; seriam outros, grandes e nobres. Os seus destinos podiam ser brilhantes; tinha razão a cabocla, sem saber o que dizia.
— Deixe às senhoras as suas crenças da meninice, concluiu; se elas têm fé na tal mulher do Castelo, e acham que é um veículo de verdade, não as desminta por hora. Diga-lhes que eu estou de acordo com o seu oráculo. Teste David cum Sibylla.
— Digo, digo! escreva a frase.
Plácido foi à secretária, escreveu o verso, e deu-lhe o papel, mas já então Santos advertira que mostrá-lo à mulher era confessar a consulta espírita, e naturalmente o perjúrio. Referiu ao amigo os escrúpulos de Natividade e pediu que calassem tudo.
— Estando com ela, não lhe diga o que se passou entre nós.
Saiu logo depois, arrependido da indiscrição, mas deslumbrado da revelação. Ia cheio de números da Escritura, de Pedro e Paulo, de Esaú e Jacó. O ar da rua não espanou a poeira do mistério; ao contrário, o céu azul, a praia sossegada, os montes verdes como que o cercavam e cobriam de um véu mais transparente e infinito. A rixa dos meninos, fato raro ou único, era uma distinção divina. Contrariamente à esposa, que cuidava somente da grandeza futura dos filhos, Santos pensava no conflito passado.
 Os jovens crescem e a mãe possui problemas ao lidar com os filhos, que vivem brigando. É interessante que os irmãos Pedro e Paulo não são verdadeiramente diferentes em opinião e temperamento, antes iguais, só que ambos têm uma tendência muito forte de entrar em conflito com o outro, assim como o Pedro e o Paulo bíblicos. Machado maneja muito bem esses conflitos familiares internos e essas pseudo-diferenças.

Como o habitual do estilo do autor, a metalinguagem se faz muito presente, e enquanto o narrador tece a história, traça-se também uma íntima relação de produção de sentidos entre leitor-autor-texto-sociedade. A linguagem da obra é o que faz machado ficar extremamente vivo entre nós. Esaú e Jacob é uma obra grandiosa, e só não comento mais sobre o livro por conta dos Spoillers. Outros personagens que chamam atenção são Flora (que desconfio ser uma paixão, de certo modo pedófila, do Ayres), Ayres, Natividade, Custódio (da Tabuleta Velha, que é um episódio anedótico da obra) entre outros.

Esse livro foi lido para o Desafio Literário do mês de Fevereiro, e é facilmente encontrado em qualquer livraria, qualquer editora e em todos os formatos, e por estar em domínio público pode ser facilmente baixado legalmente da internet. Particularmente, acho um charme ler as edições mais antigas, que conservam a grafia original. Citação acima tirada do site do MEC.


Nota do Elaphar: 9,4

Edição Lida:
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Esaú e Jacob. São Paulo: W.M. Jackson Editores, 1950, 432p. (Obra Completa de Machado de Assis Vol.8)

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