sábado, 11 de fevereiro de 2012

Livro de Jeremias - Anônimo

É a segunda vez que leio um texto da grande compilação chamada de Tanakh pelos judeus e de Antigo Testamento pelos cristãos. E pela segunda vez coloco a autoria como anônima, apesar de que muitos religiosos consideram que esse livro teria sido escrito pelo profeta Jeremias ou ditado por este ao seu auxiliar Baruc (ou Baruque ou Baruch). Uma pena a coisa não ser tão simples assim. As redações sucessivas, partes históricas posteriores, fragmentaridade do discurso, as diferentes vozes discursivas, oposição de ideias e semelhanças com diversos outros textos anteriores e posteriores acabam indicando autoria múltipla, como a pós-exílica (nos dois capítulos finais) e da Obra Histórica Deuteronomista. Para agravar, há ao menos duas versões bem diferentes do livro que são aceitas e coexistem: o livro de Jeremias do texto massorético e da septuaginta.
Alerta importante: Eu estou lendo o Livro de Jeremias como um texto LITERÁRIO, não RELIGIOSO. Os profetas, reis, acontecimentos e até mesmo Deus estão sendo vistos aqui como PERSONAGENS e TRAMAS literários puramente. Não está em cheque a religião, mas somente a literatura.
Existem grandes dificuldades, para um cristão ou judeu, de se ler algum texto sagrado como literatura. A primeira delas é a leitura dogmática e muitas vezes forçada de certas passagens. Lembro de algumas leituras bizarras que alguns me tentaram passar goela abaixo. Outro problema é a questão da veracidade, onde as diversas leituras (muitas delas de natureza textual problemática) são vistas como verdade absoluta e acabam gerando conflitos interminaveis. Jeremias em especial fornece outra dificuldade: a montagem quase aleatória de muitos fragmentos, que não é nem cronológica nem temática, e acaba gerando algumas dificuldades de leitura no sentido de organizar a cronologia dos fatos.

Jeremias é de origem humilde, e foi profeta durante o reinado de 3 reis: Josias, Jeoaquim e Zedequias, sendo que esses nomes se alteram um pouco de versão para versão. Continua a história até depois do exílio na babilônia. As profecias de Jeremias são importantíssimas para a história bíblica, pois sua previsão de libertação é importante para a história de Daniel e ao profetizar um salvador da família de Davi acaba sendo pedra de toque para o início do livro de Mateus no Novo Testamento, que justifica genealogicamente o salvador como Cristo. Apesar de possuir os dois últimos capítulos sobre a libertação judaica e a queda babilônica, Jeremias não viveu para ver esses acontecimentos, e a flexão passada aponta uma inclusão em redação posterior.

Muito do que aparece no livro de Jeremias é recorrente na história dos judeus: idolatria provocando a ira de Deus, que entrega o seu povo na mão de invasores até o arrependimento. Apesar do tema recorrente, esse livro é especialíssimo, por isso, muito querido. Não há como se mapear a influência que esse livro teve no imaginário e na literatura universal.

Deus avisa Jeremias que o povo de Judá será destruído por outros povos, por ter pecado contra o Senhor:
Valeu-te este castigo tua malícia, e tuas infidelidades atraíram sobre ti a punição. Sabe, portanto, e vê quanto te foi funesto e amargo abandonar o Senhor teu Deus e não ter tido mais temor algum de mim - oráculo do Senhor JAVÉ dos exércitos.
Jeremias 2:19
[...]
Do seu covil parte um leão, e qual demolidor de nações se põe a caminho, saindo de seu refúgio para transformar em deserto a tua terra, e as cidades em desolação, onde ninguém mais habitará.
Revesti-vos, pois, de saco, chorai e gemei, pois que a tremenda cólera do Senhor não se afastou de nós.
Jeremias 4:7-8
Jeremias, por sua piedade pede a Deus várias vezes para que perdoe o povo:
Minhas entranhas! Minhas entranhas! Sofro! Oh! as fibras de meu coração! O coração me bate, não me posso calar! Ouço o som das trombetas e o fragor da batalha.
Anunciam-se desastres sobre desastres, todo o país foi devastado. Foram de repente destruídas minhas tendas; num instante, meus pavilhões.
Até quando verei o estandarte, e ouvirei o som da trombeta?
Está louco o meu povo; nem mais me conhece. São filhos insensatos, desprovidos de inteligência, hábeis em praticar o mal, incapazes do bem.
Olho para a terra: tudo é caótico e deserto; para o céu: dele desapareceu toda a luz.
Olho para as montanhas e as vejo vacilar; e as colinas todas estremecem.
Olho: já não há nenhum ser humano; todas as aves do céu fugiram.
Olho: tornaram-se desertos os campos; todas as cidades foram destruídas diante do Senhor, ante a fúria de sua cólera.
Porque toda a terra será devastada - oráculo do Senhor -, mas não a exterminarei completamente.
Eis a razão pela qual a terra cobriu-se de luto, e o céu, lá no alto, revestiu-se de negror. Pois que eu disse, e assim decretei: não voltarei atrás e não me retratarei.
Ao grito de: Cavaleiros! Arqueiros!, toda a terra desandou em fuga. Lançaram-se nos esconderijos e galgaram rochedos, as cidades foram abandonadas e os habitantes desapareceram.
E tu, devastada, para que revestir-te de púrpura, engalanar-te com ornamentos de ouro, e alongar-te os olhos com pinturas? Em vão tentas ser bela; desprezam-te os amantes. É tua vida que odeiam.
Ouço gritos como os da mulher ao dar à luz, gritos de angústia quais os do primeiro parto. São os clamores da filha de Sião; geme e ergue as mãos: Desgraçada de mim! Desfaleço ante os algozes.
Jeremias 4:19-31
Nesse início do livro, Deus se aparenta muito com o Javé do Gênesis, parecendo assustadoramente humano. É importante perceber que a piedade de Jeremias vai se esvaíndo quando seus irmãos conspiram contra ele.

O povo de Israel, como criança, faz o que é habitual: rejeita a palavra de Deus. É importante o fato da presença de falsos profetas profetizando em nome de Deus, dizendo que não virá praga e mal nenhum. Do meio para o final do livro há muitas reflexões sobre a profecia, algumas delas muito legais. Uma muito boa é quando Jeremias é condenado pelo povo (cap 26), e lembram-se os precedentes dos profetas que também anunciaram desgraças e foram condenados ou poupados, o que resulta na prisão de Jeremias mas salva sua vida. Há também uma mensagem específica contra esses profetas em 23:9-32. Outra passagem legal em relação à profetas é a seguinte:
[o]s profetas que nos precederam a mim e a ti anunciaram, contra numerosos países e reinos poderosos, guerra, fome e peste.
Quanto ao profeta que predisse a felicidade, somente quando seu oráculo se realizar, poder-se-á saber se ele é realmente um enviado do Senhor.
Jeremias 28:8-9
Esse livro possui uma série de metáforas como a do pode de barro (18:1-12) e a dos cestos de figo (cap 24). Muito interessante também é a influência que esse livro tem sobre outros textos, tanto bíblicos (como 23:5, que posteriormente será retomado em Mateus para justificar o "reinado" de Cristo), quanto literários (o famoso Bálsamo de Gileade de Poe) e músicais (se não ouviram ainda a Sinfonia No.1 "Jeremiah" de Bernstein não sabem o que é música).

Faltam ainda as outras coisas do livro: Jeremias fala sempre a palavra de Deus e nunca o ouvem (nem o povo, nem o rei; nem antes da dominação babilônica nem depois), os babilônicos dominam Judá e todas as suas cidades, depois o povo foge para o Egito mesmo com o alerta de Jeremias, e por fim o Egito cai. No fim do livro se fala da destruição da Babilônia, mas isso é posterior. Interessante notar a relação que há entre as odes finais do livro e o Salmo 137 (ambos sobre a destruição babilônica).

O livro é cheio de nuances que, se fosse tentar expicar todas, escreveria páginas e páginas e não terminaria. Há mais uma coisa que chama atenção é a referência aos escritos de Baruc que foram perdidos ou destruídos. Baruc era auxiliar de Jeremias e escrevia o que o profeta ditava (e não é necessariamente o que o livro contém), e há no livro um apelo para a escrita.

As traduções do texto são muitas e variadas. A Almeida e a NTLH são provavelmente as mais conhecidas, apesar de que a NTLH peca por ser escrita em péssimo português. Outras edições incluem a Traducção Brazileira, Ecumênica, Ave Maria, Pastoral e muitas outras. As citações acima são da versão Católica disponível em: http://www.bibliaonline.com.br/vc/jr/1, que não foi exatamente a versão lida.

Muitas outras coisas me chamaram atenção no livro, mas como não quero escrever um TCC (e a maioria dos leitores não querem ler um), dou minha resenha por encerrada e fica a dica da leitura do livro. Não é tão variado em histórias e dramas como outros livros históricos (como o Pentateuco, Juizes, Reis e Samuel por exemplo), mas é bem interessante também, apesar de que muitas repetições podem atrapalhar a leitura. Este livro foi lido para o Desafio Literário 2012.

Nota do Elaphar: 8,4

3 comentários:

  1. Que escolha interessante de leitura. Bacana tua resenha, mas ainda assim não consegui me interessar muito a ponto de ler também.

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  2. Gostei da escolha como sempre diferente. Eu me interessei em ler sim. Acho que vou ler a Bíblia judaica completa comparando-a com as demais traduções que tenho em casa.

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  3. Nossa! Que abordagem interessante. Já li algumas vezes Jeremias enxerga-lo como literatura ainda me parece, a princípio, um pouco difícil, mas sua resenha inspira. ;)

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