Existem grandes dificuldades, para um cristão ou judeu, de se ler algum texto sagrado como literatura. A primeira delas é a leitura dogmática e muitas vezes forçada de certas passagens. Lembro de algumas leituras bizarras que alguns me tentaram passar goela abaixo. Outro problema é a questão da veracidade, onde as diversas leituras (muitas delas de natureza textual problemática) são vistas como verdade absoluta e acabam gerando conflitos interminaveis. Jeremias em especial fornece outra dificuldade: a montagem quase aleatória de muitos fragmentos, que não é nem cronológica nem temática, e acaba gerando algumas dificuldades de leitura no sentido de organizar a cronologia dos fatos.Alerta importante: Eu estou lendo o Livro de Jeremias como um texto LITERÁRIO, não RELIGIOSO. Os profetas, reis, acontecimentos e até mesmo Deus estão sendo vistos aqui como PERSONAGENS e TRAMAS literários puramente. Não está em cheque a religião, mas somente a literatura.
Jeremias é de origem humilde, e foi profeta durante o reinado de 3 reis: Josias, Jeoaquim e Zedequias, sendo que esses nomes se alteram um pouco de versão para versão. Continua a história até depois do exílio na babilônia. As profecias de Jeremias são importantíssimas para a história bíblica, pois sua previsão de libertação é importante para a história de Daniel e ao profetizar um salvador da família de Davi acaba sendo pedra de toque para o início do livro de Mateus no Novo Testamento, que justifica genealogicamente o salvador como Cristo. Apesar de possuir os dois últimos capítulos sobre a libertação judaica e a queda babilônica, Jeremias não viveu para ver esses acontecimentos, e a flexão passada aponta uma inclusão em redação posterior.
Muito do que aparece no livro de Jeremias é recorrente na história dos judeus: idolatria provocando a ira de Deus, que entrega o seu povo na mão de invasores até o arrependimento. Apesar do tema recorrente, esse livro é especialíssimo, por isso, muito querido. Não há como se mapear a influência que esse livro teve no imaginário e na literatura universal.
Deus avisa Jeremias que o povo de Judá será destruído por outros povos, por ter pecado contra o Senhor:
Jeremias, por sua piedade pede a Deus várias vezes para que perdoe o povo:Valeu-te este castigo tua malícia, e tuas infidelidades atraíram sobre ti a punição. Sabe, portanto, e vê quanto te foi funesto e amargo abandonar o Senhor teu Deus e não ter tido mais temor algum de mim - oráculo do Senhor JAVÉ dos exércitos.
Jeremias 2:19
[...]
Do seu covil parte um leão, e qual demolidor de nações se põe a caminho, saindo de seu refúgio para transformar em deserto a tua terra, e as cidades em desolação, onde ninguém mais habitará.
Revesti-vos, pois, de saco, chorai e gemei, pois que a tremenda cólera do Senhor não se afastou de nós.
Jeremias 4:7-8
Nesse início do livro, Deus se aparenta muito com o Javé do Gênesis, parecendo assustadoramente humano. É importante perceber que a piedade de Jeremias vai se esvaíndo quando seus irmãos conspiram contra ele.Minhas entranhas! Minhas entranhas! Sofro! Oh! as fibras de meu coração! O coração me bate, não me posso calar! Ouço o som das trombetas e o fragor da batalha.
Anunciam-se desastres sobre desastres, todo o país foi devastado. Foram de repente destruídas minhas tendas; num instante, meus pavilhões.
Até quando verei o estandarte, e ouvirei o som da trombeta?
Está louco o meu povo; nem mais me conhece. São filhos insensatos, desprovidos de inteligência, hábeis em praticar o mal, incapazes do bem.
Olho para a terra: tudo é caótico e deserto; para o céu: dele desapareceu toda a luz.
Olho para as montanhas e as vejo vacilar; e as colinas todas estremecem.
Olho: já não há nenhum ser humano; todas as aves do céu fugiram.
Olho: tornaram-se desertos os campos; todas as cidades foram destruídas diante do Senhor, ante a fúria de sua cólera.
Porque toda a terra será devastada - oráculo do Senhor -, mas não a exterminarei completamente.
Eis a razão pela qual a terra cobriu-se de luto, e o céu, lá no alto, revestiu-se de negror. Pois que eu disse, e assim decretei: não voltarei atrás e não me retratarei.
Ao grito de: Cavaleiros! Arqueiros!, toda a terra desandou em fuga. Lançaram-se nos esconderijos e galgaram rochedos, as cidades foram abandonadas e os habitantes desapareceram.
E tu, devastada, para que revestir-te de púrpura, engalanar-te com ornamentos de ouro, e alongar-te os olhos com pinturas? Em vão tentas ser bela; desprezam-te os amantes. É tua vida que odeiam.
Ouço gritos como os da mulher ao dar à luz, gritos de angústia quais os do primeiro parto. São os clamores da filha de Sião; geme e ergue as mãos: Desgraçada de mim! Desfaleço ante os algozes.
Jeremias 4:19-31
O povo de Israel, como criança, faz o que é habitual: rejeita a palavra de Deus. É importante o fato da presença de falsos profetas profetizando em nome de Deus, dizendo que não virá praga e mal nenhum. Do meio para o final do livro há muitas reflexões sobre a profecia, algumas delas muito legais. Uma muito boa é quando Jeremias é condenado pelo povo (cap 26), e lembram-se os precedentes dos profetas que também anunciaram desgraças e foram condenados ou poupados, o que resulta na prisão de Jeremias mas salva sua vida. Há também uma mensagem específica contra esses profetas em 23:9-32. Outra passagem legal em relação à profetas é a seguinte:
Esse livro possui uma série de metáforas como a do pode de barro (18:1-12) e a dos cestos de figo (cap 24). Muito interessante também é a influência que esse livro tem sobre outros textos, tanto bíblicos (como 23:5, que posteriormente será retomado em Mateus para justificar o "reinado" de Cristo), quanto literários (o famoso Bálsamo de Gileade de Poe) e músicais (se não ouviram ainda a Sinfonia No.1 "Jeremiah" de Bernstein não sabem o que é música).[o]s profetas que nos precederam a mim e a ti anunciaram, contra numerosos países e reinos poderosos, guerra, fome e peste.
Quanto ao profeta que predisse a felicidade, somente quando seu oráculo se realizar, poder-se-á saber se ele é realmente um enviado do Senhor.
Jeremias 28:8-9
Faltam ainda as outras coisas do livro: Jeremias fala sempre a palavra de Deus e nunca o ouvem (nem o povo, nem o rei; nem antes da dominação babilônica nem depois), os babilônicos dominam Judá e todas as suas cidades, depois o povo foge para o Egito mesmo com o alerta de Jeremias, e por fim o Egito cai. No fim do livro se fala da destruição da Babilônia, mas isso é posterior. Interessante notar a relação que há entre as odes finais do livro e o Salmo 137 (ambos sobre a destruição babilônica).
O livro é cheio de nuances que, se fosse tentar expicar todas, escreveria páginas e páginas e não terminaria. Há mais uma coisa que chama atenção é a referência aos escritos de Baruc que foram perdidos ou destruídos. Baruc era auxiliar de Jeremias e escrevia o que o profeta ditava (e não é necessariamente o que o livro contém), e há no livro um apelo para a escrita.
As traduções do texto são muitas e variadas. A Almeida e a NTLH são provavelmente as mais conhecidas, apesar de que a NTLH peca por ser escrita em péssimo português. Outras edições incluem a Traducção Brazileira, Ecumênica, Ave Maria, Pastoral e muitas outras. As citações acima são da versão Católica disponível em: http://www.bibliaonline.com.br/vc/jr/1, que não foi exatamente a versão lida.
Muitas outras coisas me chamaram atenção no livro, mas como não quero escrever um TCC (e a maioria dos leitores não querem ler um), dou minha resenha por encerrada e fica a dica da leitura do livro. Não é tão variado em histórias e dramas como outros livros históricos (como o Pentateuco, Juizes, Reis e Samuel por exemplo), mas é bem interessante também, apesar de que muitas repetições podem atrapalhar a leitura. Este livro foi lido para o Desafio Literário 2012.
Nota do Elaphar: 8,4
Que escolha interessante de leitura. Bacana tua resenha, mas ainda assim não consegui me interessar muito a ponto de ler também.
ResponderExcluirGostei da escolha como sempre diferente. Eu me interessei em ler sim. Acho que vou ler a Bíblia judaica completa comparando-a com as demais traduções que tenho em casa.
ResponderExcluirNossa! Que abordagem interessante. Já li algumas vezes Jeremias enxerga-lo como literatura ainda me parece, a princípio, um pouco difícil, mas sua resenha inspira. ;)
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