domingo, 8 de abril de 2012

Antologia do Conto Húngaro (Org. e Trad. Paulo Rónai)

Mais uma leitura para o Desafio Literário de 2012, e o tema desse mês é Escritor Oriental. ... Alguns devem estar se perguntando porque diabos escolhi uma antologia de contos húngaros como literatura Oriental se, como todos devem saber, a Hungria fica no centro da Europa,. ao lado da Áustria e outros países como a Romênia e Ucrânia. Lógico que não perguntei para a equipe do DL a validade de minha escolha (descaso esse que me faz pensar que um dia ainda vou ser expulso do desafio...), e agora vou explicá-la.

Questões como orientalidade vs ocidentalidade são muito defíceis de por um ponto final. Na resenha passada mostrei um desses problemas, mais próprio da poesia, que é a multiplicidade de vozes resultante de um processo tradutório. Outros problemas podem aparecer, no caso de um artista nascer em um lugar mas ser artisticamente de outro (como o caso do húngaro Lizst, que nem ao menos sabia falar a língua de seu país, ou no caso da nossa Clarice Lispector, ou no caso do poeta português Carlos de Oliveira, nascido em Belém), ou ainda mais grave é do autor possuir a influência de dois lugares distintos (como Nabokov, Beckett, ou Eliot)  ou até mesmo pertencer ora a um lugar, oura a outro (como o Vieira português e o Vieira brasileiro, ou o Stephan Zweig austríaco e o Zweig brasileiro, ou o Rilke alemão e o Rilke francês... etc...). O que tenho percebudo nas resenhas desse desafio é uma série de escritores nascidos em países do extremo oriente (principalmente Japão), mas que pertenceram de fato (socielmente, espiritualmente, linguísticamente e, por quê não, literariamente) a outro país, geralmente de lingua inglesa. Nacionalidade envolve muito mais que lugar de nascimento, não fosse assim não teríamos escritores alemães e austríacos nascidos em Praga ou na Romênia ou escritores brasileiros nascidos na Ucrânia.

Agora, o que tem a Hungria de oriental? Tudo e nada! Para que a escolha possa ser compreendida, deve-se tomar algumas lições de história, genética e linguísticas, e como estou meio sem tempo, vou resumir ao máximo. Todos devem conhecer as histórias dos Hunos, que foram um povo oriental (da região que corresponde a China e Mongólia) que fez o maior estrago no ocidente na Era Romana. Os magiares vieram junto com os hunos, e se estabeleceram no lugar (alguns Húngaros acreditam que os magiares são descendentes dos próprios hunos). Portanto, o povo magiar é um povo geneticamente oriental, e a língua húngara, apesar do alfabeto latino, é, como se é de esperar, também uma língua oriental, da família de línguas uralicas. Se considerarmos a teoria linguística das línguas uralo-altaicas, o húngaro é do mesmo tronco das línguas turca, japonesa, coreana e das diferentes línguas da mongólia (daí o fato de que em húnguaro o sobrenome é dito antes do prenome, no caso do tradutor seria Rónai Pál ['honai 'pa:l], abrasileirado para Paulo Rónai). Portanto, os Húngaros são etnicamente e linguísticamente provenientes da Asia, porém deslocados ao centro europeu onde possuem um sério conflito identitário entre oriente e ocidente. Por um lado tentam preservar a sua cultura, por outro a aspiração ocidental. Conhecer a cultura, a história e a literatura da Hungria é conhecer o cerne do problema Ocidente/Oriente.

E convenhamos, a história da Hungria é uma das mais poéticas do mundo: povo oriental vivendo em meio a uma cultura estranha, cristanizada à força, esmagada politicamente pela Áustria, posteriormente pela Alemanha e supostamente libertada pela URSS, o que fez uma série de chagas nesse povo. Diga-se de passagem, alguns dos melhores contos desse livro relatam direta ou indiretamente o conflito identitário entre ocidente e oriente, ou os conflitos políticos e incoerência social.

O número de contos nesse livro é bem grande (30), tanto quanto as variedades de temática e estilo, o que torna muito difícil falar sobre todos eles. Ainda assim vou tentar ao menos escrever uma linha sobre cada conto. Os autores estão em ordem cronológica de nascimento, e é curioso que os últimos escritores morreram praticamente todos no mesmo período (1944-1945), no final da ocupação nazista.


O primeiro escritor é um representante do romantismo literário, e seu conto (Divertimento Forçado) é interessante por mostrar a pretenção da nobreza húngara ao ocidentalismo, já que o barão (personagem principal) mistura locuções francesas e abusa de galicismos no seu discuraso, e apesar disso, acaba entrando em contato com um ambiênte completamente húngaro, diferentemente do ambiente nobre que era mais propriamente parisiense ou vienense. Provavelmente  o autor não tinha em mente esse conflito ocidente/oriente como ponto importante da sua obra, diferente de Ady Endre, que é bem posterior, que em seu conto intitulado Chabachef, O assassino relata um homem que é dois, um Ocidental parisiense e um Oriental tradicional, sendo que um desses homens faz coisas que o outro jamais sonharia; é uma narrativa que todos deveriam ler.

Os dois contos de Mikszáth Kálmán são de ordem cômica e irônica, mas demonstram um grande conhecimento do interior dos seres humanos. O primeiro conto é uma resposta à teoria literária (não sei por que quase todo escritor odeia os críticos literários), enquanto o segundo  é uma divertida história tragicômica de um médico tentando convencer um paciente a amputar seu braço para sobreviver; pode parecer frívolo, mas a narrativa é muito divertida, profunda e bem construída. Gárdonyi Géza aparece na antologia com dois contos bastante diferentes, um mais mítico-alegórico, o outrocom uma carga de significado maior, e ambos bem diferentes, aparentemente, do que seria o estilo normal do escritor em seus romances históricos O Homem Invisível e Estrelas de Eger. Szomory Desö é talvez o mais ocidental da coletânea, mas não o único, e é um tanto tagarela; seu conto definitivamente não me cativou.

Heltai Jenö é um escritor alegre e também um tanto sombrio, que viveu muitos anos. Apesar dos dois contos dele serem bons (particularmente o A Morte e o Médico), não chega a ser um escritor genial, além de sua personalidade ser fraca; é muito francês, e infelismente, inferior à muitos franceses também. Ady Endre é dos maiores escritores húngaros, e seu conto, como já foi dito, merece grande destaque por retratar com genialidade o conflito oriente/ocidente dentro da sociedade húngara. Krudy Gyula é uma grata surpresa nesse livro, seu conto Uma das Histórias do Soldado Raso Harras Rudolf é incrível, e um anacronismo moderno que deveria colocar esse entre as pérolas da contística mundial; é talvez o melhor conto da coletânea.

Os dois escritores que se seguem (Molnár Ferenc e Móricz Zsigmond) mostram mais profundamente o homem húngaro, particularmente o despossuído. Zsigmond é o melhor dos dois, e seus 3 contos são obras primas, de um naturalismo moderado e bem estruturado. Bárbaros figura entre os melhores contos do livro. Podemos compreender muito da cultura do país por estes contos, e essa cultura nos parece muito antiquada, ao nosso olhar ocidental, o que mostra um grande atraso da chegada do mundo "capitalista ocidental" em algumas regiões da hungria, que mais parecem feudos medievais, ao mesmo tempo que as grandes cidades parecem uma nova Viena.

Bíró Lajos é um escritor original e interessante, mas seu conto fica meio apagado em relação a outros do livro. Kaffka Margit é a única mulher do livro, e ainda por cima descendente de tchecos. Seu conto fala da pobresa melancólica, sem perspectivas, enquanto o humorista Kosztolányi Desö já é bem mais otimista, apesar de sarcástico e irônico, e aparece com cinco contos na antologia, todos eles aparentemente sem um foco na narrativa, mas na em uma ideia ou concelho, quase uma coda em seus contos. Destaque para Auréola Cinzenta e Aventura Búlgara.

Szép Ernö é dito como intraduzível, e o próprio tradutor diz que escolheu um conto que não é dos melhores de sua produção em respeito à "impossibilidade" de verter outros. Apesar de tudo, seu conto Murglics mostra-se de qualidade.

Karinthy Friges é escritor alegre, outro humorista, e até satirista, e seus três contos se mostram muito agradáveis de se ler. Molnár Ákos tem como biografia uma das histórias mais comoventes do livro, mas seu conto é um tanto alegre (apesar de que não deveriamos rir) e, junto de Pap Károly (também morto no ódio nazista) escrevem dois dos contos mais bem realizados do livro (Um Almoço e Música, respectivamente). Mais do que a qualidade literária, a temática dos interesses e opressão, além de exploração em diferentes esferas, são os temas dos dois contos, sendo o primeiro uma narrativa do chefe em relação aos empregados, que devido uma incompreensão é quase anedótico, e o segundo mostra a exploração familiar, que faz um pai querer, sem sucesso, vender o filho por álcool. Os dois contos através do riso da situação mostram graves incoerências e atrocidades da sociedade. Ambos figuram entre os melhores contos. Mesmo valor social possui o conto de Gelléri Andor Endre, que poderia muito bem ser escrito no Brasil sem problemas.


Os dois contistas e contos que faltam (O Criminoso de Márai Sándor e Madelon, a cachorra de Szerb Antal) são de grande valor literário, mesmo sem ser propriamente sociais ou propriamente "húngaros" (no sentido nacionalista). O criminoso recebe destaque devido ao trabalho metalinguístico e bom aproveitamento dos clichés da literatura policial, e como paródia do gênero é a mais bem realizada que conheço.

Por fim, o que posso dizer sobre a edição? 3 dos maiores nomes das letras nacionais assinam esse livro: Paulo Ronai (organização, estudo, tradução e notas), Guimarães Rosa (introdução) e Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira (revisão); ou seja, não se pode reclamar de nada. É um trabalho feito com amor, e a capa, apesar de simples, exemplifica muito bem a "alma" do livro. Os problemas do livro são só os que são comuns à toda antologia e à todo livro de uma língua muito diferente da nossa: a diferença da qualidade dos textos, a apresentação do escritor por "amostragem", na maioria das vezes imprecisa, a vontade de querer ler mais do mesmo autor e saber que não possui nada ou dele publicado (dos escritores aqui presentes só sei do livro Os Meninos da Rua Paulo de Molnár e O Homem Invisível de Gárdonyi publicados no Brasil), e, por fim, a dificuldade de pronunciar, e por conseguinte memorizar, a maioria dos nomes próprios.

Recomendadíssimo, apesar de difícil de achar, é um livro indispensável para se ter em casa.

Nota do Elaphar: 9,8
Edição Lida: RÓNAI, Paulo (org). Antologia do Conto Húngaro. tradução e notas de Paulo Ronái. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1958.

2 comentários:

  1. Não conhecia esse livro, mas ele me pareceu muito interessante, deu até vontade de comprar. Por algum motivo me interesso bastante por literatura húngara, apesar de não conhecer nada além do Molnár e do Kosztolányi.

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  2. Alguns romances de Sándor Márai foram recentemente editados em Portugal.

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