quarta-feira, 22 de junho de 2011

Fausto - Goethe (Tradução de F. de Castilho)

Pintura de Eugène Delacroix
Estava quase pensando que já havia lido tudo o que havia de bom no genero teatral, mas sempre um texto novo pode nos trazer grandes surpresas. Goethe dispensa comentários: é o nome mais famoso da literatura alemã e um milagre na história da literatura, um dos poucos escritores que são geniais em todos os gêneros que escreve (no caso de Goethe os gêneros épico, lírico, dramático, novelístico, satírico, didático, epistolar e científico). A obra Fausto é de longe seu mais famoso trabalho, ao lado dos Sofrimentos do Jovem Werter, Wilhelm Meister e alguns poemas superfamosos como O Aprendiz de Feiticeiro (Der Zauberlehrling), O Erlkönig e a Dança Macabra (Totentanz).

O mito de Fausto é bastante recorrente na literatura (principalmente em língua alemã), e se baseia em uma figura histórica. Fausto era um sábio que pouco se sabe sobre sua vida, e mitologicamente crê-se que Fausto fizera um pacto com o demônio. Marlowe foi o primeiro a representa-lo em um texto de qualidade literária, mas no romantismo alemão centenas de escritores escreveram sua versão do mito. Mais recentemente temos a versão de Fernando Pessoa (Fausto, uma tragédia Subjetiva) e a versão de Thomas Mann (Doktor Faustus). Sem sombra de dúvidas, o Fausto goethiano é o mais famoso, e foi base para inúmeras adaptações (como a abertura de Wagner, a ópera francesa e o episódio do Chapolin Colorado).

Fausto é uma tragédia, contendo todos os elementos para ser considerada como tal, mas muito se critica quanto a obra Fausto ser ou não ser teatral. Em primeiro lugar há um "Prólogo do Autor", onde o autor fala sobre si e a obra, em seguida vem um "Prólogo no Palco" bastante metalinguístico, onde o Poeta, o Empresário e o "Gracioso" (Lustige Person, ou seja, bobo, palhaço) discutem sobre a criação e apresentação da peça. Além desses dois elementos fora do comum (que não são muito próprios do teatro), há um Intermezzo tão fragmentário e estranho (a lá Sousândrade) que sua encenabilidade é questionável. Desconsiderando esses elementos, a peça é absurdamente enorme para um texto teatral (a primeira parte da tragédia tem mais de 300 páginas), as instruções dramáticas parecem que foram escritas para ser lidas e não encenadas, e Fausto possui algumas cenas que fariam a cena da "Imolação dos Deuses" (de Götterdämmerung de Wagner) parecer uma peça escolar. Soma-se a tudo isso a dificuldade de compreender o texto, mas vamos por partes...

O livro começa com um soberbo prefácio de Otto Maria Carpeaux (a minha edição da Jackson Editores), que ajuda a esclarecer muitos pontos da obra que podem parecer obscuros, além de mostrar as absurdas diferenças entre "Fausto", uma tragédia" e "Fausto, segunda parte da tragédia". Lastimavelmente o livro não contém a "segunda parte" (que é uma obra autônoma), já que Castilho não a empreendeu traduzi-la. A esplicação de Castilho é simples: "extravagâncias absurdas [da segunda parte] são muito mais repugnantes ao bom senso". É importante notar que Castilho não entendia uma frase de alemão ao traduzir o Fausto, e portanto, traduziu por interposição, o que em poesia não é totalmente recriminável.

A obra começa no já citado "Prólogo no Palco", e segue para um "Prólogo no Céu" (que castilho considera já como início da peça [Quadro I]). Um coro de Anjos canta, quando o demônio (Mefistófeles) conversa com o Senhor, que lhe pede informações sobre o Fausto. Aí Mefistófeles resolve propor um desafio ao Senhor, que é prontamente aceito.
      MEFISTÓFELES
Quer Vossa Majestade uma apostinha?
Verá se também este se não perde,
uma vez que me deixe encaminhá-lo.
      O SENHOR
Deixo, enquanto for vivo. Onde há cobiças,
é natural o errar.
     MEFISTÓFELES
                              Muito obrigado.
Pois co’os vivos também é que me eu quero;
com defuntos embirro; o meu regalo
é tentar caras rechonchudas, frescas;
sou como o gato: de murganho morto
não faço caso; o meu divertimento
é correr e arpoar aos que me fogem.
     O SENHOR
Como queiras. Permito-te que o tentes.
Se lograres caçá-lo desbaptiza-o,
e inferna-o muito embora. Mas, corrido
fiques tu in æternum, se confessas
que o bom, dado que errar às vezes possa,
nunca nos sai da estrada, a recta, a nossa.
     MEFISTÓFELES
Bom. Não lhe há-de tardar o desengano,
Ganhei tão certo a aposta, como é certo
chamar-me eu Mefistófeles. Se eu vingo
na empresa, a palma do triunfo é minha.
Há-de se regalar de comer terra,
como a tia serpente.
 Depois parte para o inicio da tragédia propriamente dita, com um famoso monólogo de Fausto. Segundo Carpeaux, os jovens decoram passagens inteiras dos monólogos do Fausto na alemanha.
      FAUSTO (dessocegado, sentado numa poltrona de sola e pregaria de cobre, com a cabeça fincada nas mãos, e os cotovelos na mesa de estudo, na qual derrama luz frouxa um candeeiro aceso.)
Ao cabo de escrutar co’o mais ansioso estudo
filosofia, e foro, e medicina, e tudo
até a teologia... encontro-me qual dantes;
em nada me risquei do rol dos ignorantes.
Mestre em artes me chamo; inculco-me Doutor;
e em dez anos vai já que, intrépido impostor,
aí trago em roda viva um bando de crendeiros,
meus alunos... de nada, e ignaros verdadeiros.
O que só liquidei depois de tanta lida,
foi que a humana inciência é lei nunca infringida.
Que frenesi! Sei mais, sei mais, isso é verdade,
do que toda essa récua inchada de vaidade:
lentes e bachareis, padres e escrevedores.
Já me não fazem mossa escrúpulos, terrores
de diabos e inferno, atribulados sonhos
e martírio sem fim dos ânimos bisonhos.
[...]
Percebe-se que o Fausto de Goethe é inquieto, não quer saber muito, mas sim TUDO, missão fadada ao fracasso. Desde o início da narrativa me identifiquei muito com o personagem, entretanto, essa identificação vai se estinguindo no decorrer da narrativa (ainda bem). Segue-se uma bizarra cena onde Fausto conversa com um Espírito. Entra Wagner, sai o espírito. Wagner é um outro tipo de sábio, aquele que tanto Fausto quanto Goethe deploravam. Depois de mais um monólogo de Fausto, o protagonista tenta suicídio, mas ao ouvir sons da igreja ao lado (que não aparece no palco) desiste da ideia por conta dos sons lhe trazerem lembranças.

As próximas passagens são entre Fausto e Wagner numa rua (com um pequeno prólogo dos passantes), aí é que podemos compreender as diferenças de filosofia e objetivos dos dois personagens. Posteriormente, mais um monólogo de Fausto (é, ele fala mais sosinho que o Hamlet de Shakespeare), que está acompanhado de um cachorro. Nesse monólogo há a outra passagem famosa de Fausto, onde o personagem transforma o "No princípio era o verbo" ("Im Anfang war das Wort!") das escrituras em "No princípio era o Ato" ("Im Anfang war die Tat!", para Castilho Ação). O cachorro começa a metamorfosear-se (atrapalhando o monólogo) para enfim transformar-se em Mefistófeles. Segue-se o primeiro dos muitos diálogos entre Mefistófeles e Fausto.

É extremamente interessante a caracterização que Goethe dá ao diabo. Mefistófeles é bastante esperto, mas não aparenta. Mefistófeles é irônico, seco, até certo ponto cheio de graça. Depois de alguns diálogos, Mefistófeles fará uma proposta à Fausto: Fausto será jovem e o Mefistófeles o servirá na terra, porém, se Fausto ficar satisfeito Fausto deverá servir Mefistófeles no inferno.
    MEFISTÓFELES
                                        Então já pode
no pacto conchavar-se. O que eu lhe afirmo
é que estes dias que passarmos juntos
lhe hão-de por minhas artes dar tais gostos
quais os não teve alguém.
     FAUSTO
                                         Pobre diabo,
que hás-de tu dar-me? O espírito de um homem
como eu sou, foi jamais compreensível
aos da tua relé? Tens iguarias
que não matam a fome; oiro que fulge,
mas que igual ao mercúrio, escapa aos dedos;
jogo em que é certa a perda; uma beldade
que até nos braços meus soltando arrulhos,
já está piscando o olho ao meu vizinho;
pompas de glória, um fumo!
                                             O que eu preciso,
se o tens, são frutos a pender de copa
sempre frondosa, e que antes de apanhados
não tenham já por dentro o podre e os vermes.
      MEFISTÓFELES
Bem; tudo isso há-de ter; conte comigo
Desde agora, amiguinho, à rédea solta.
Folgar e mais folgar! Leva de escrúpulos!
Tudo quanto bem sabe, é permitido.
       FAUSTO
Se eu me acosto jamais em fofa cama,
contente e em paz, que nesse instante eu morra!
Se uma só vez com falsas louvaminhas
chegares por tal arte a alucinar-me
que eu me agrade a mim próprio; se valeres
a cativar-me com deleites frívolos,
súbito a luz da vida se me apague.
Vá! queres apostar?
      MEFISTÓFELES
                                   Se quero! Aposto.
       FAUSTO
Aperto mais: Se me chegar momento
a que eu diga: «Demora-te! És formoso»
então aos teus grilhões entrego os pulsos;
então a morte aceito; os sinos dobrem;
já livre estás de mim. Dessa hora avante,
quede o relógio! Caiam-lhe os ponteiros!
Acabou-se-me o tempo.
        MEFISTÓFELES
                                        Olhe o que afirma,
que entre nós outros nada esquece.
         FAUSTO
                                                         Embora!
Não me obriguei de leve. O que eu padeço
não é escravidão? Ser logo servo
de outro ou de ti, que monta?
      MEFISTÓFELES
                                                Às suas ordens,
desde já. Tem a nata dos serventes
para este bródio de barrete fora,
meu querido Doutor!
                                  Mais uma nica.
Há morrer e viver. É bom primeiro
pôr o preto no branco: um tudo-nada;
duas regritas só.
      FAUSTO
                            Que é! Papeladas
até no inferno, rábula! Bem mostras
entender pouco do que seja um homem.
[...]
Aqui surge a figura do pacto com o demônio assinado com sangue, tão copiado por muitos outros textos. Segue-se uma cena onde Mefistófeles fala a um rapazola que busca o conhecimento científico. É interessante o desprezo que Mefistófeles tem pelas ciências e pelo "progresso". Apenas agora começa a aventura de Fausto e Mefistófeles.

A primeira parada da dupla é em um bar de jovens. Fausto fica horrorizado com a "brutidade" dos jovens no bar e Mefistófeles prega uma peça nos jovens (não tão bizarra quanto as peças que o diabo de O Mestre e a Margarida prega nos habitantes de Moscou, mas ainda assim levemente divertida). Fico imaginando alguem representando essa cena, e como fazer a gota do líquido que os jovens bebem à voro transformar-se em chama do inferno e depois minguar. Claro, não é tão difícil de representar quanto a próxima cena, onde Fausto irá beber um líquido de onde sai labaredas.

A próxima cena é na casa de uma bruxa. Mefistófeles levará Fausto para beber uma poção, que fará o protagonista se apaixonar por Margarida (que aparecerá mais a frente). Essa cena é interessantíssima em cada parte e aspécto.
     FAUSTO
Mas porque há-de ser logo a preferida
a tal mondonga velha? Não podias
preparar-me tu próprio a beberagem?
     MEFISTÓFELES
Belo divertimento! Eu preferia
gastar o tempo em construir mil pontes.
Para arranjar os filtros desta casta
quer-se, além do saber, paciência e muita,
e atenção de anos largos; só co’o tempo
é que se alcança o fermentar completo
do líquido eficaz. Pois a quantia
d’ingredientes raríssimos! É certo
que o diabo é quem os sabe, e ensina tudo;
mas lá para os estar manipulando
é que não tem pachorra.
 Além dessa passagem, há muitas outras bem legais nessa mesma cena. A bruxa entra e não reconhece o diabo, que fica irado. Mefistófeles não quer ser chamado de Satanás pois esse nome "anda há já muito entre outros mil escritos/no volumoso ról das fábulas e mitos". A bruxa prepara a poção a fala expressões incompreensíveis (que lembra um pouco as Bruxas de Macbeth).
     A FEITICEIRA (empurra Fausto para dentro do círculo; e põe-se a ler no livro,
declamando com grande ênfase
)
Agora me explico,
Do um, dez fareis;
o dois deixareis;
o três uguareis;
e já sondes rico.
Lançar quatro fora.
Dos cinco e dos seis,
sete e oito fareis.
São estas as leis,
e andai-vos embora.
E os nove são um;
e os dez são nenhum.
E tenho acabada,
segundo cumpria,
toda a tabuada
da feitiçaria.
     FAUSTO (a Mefistófeles)
Ela estará com febre? A modo que extravaga.
     MEFISTÓFELES
Ai! de pouco se admira. Inda por ora a saga
do intróito não passou; e todo o calhamaço
vai no mesmo teor. [...]
     A FEITICEIRA (continuando)
A potência da ciência
que anda oculta em névoa escura,
só revela a sua essência
ao mortal que a não procura.
     FAUSTO
Que absurdo nos diz ela? A tantos disparates
já se me oira a cabeça; oitenta mil orates
não doidejavam mais.
 Depois de beber a poção (e um grito mudo de triunfo de Mefistófeles: "Que tal!/Coa dose que tomou, qualquer mulher que aviste/vai julgá-la outra Helena./ Ah sábio, alfim caiste!"), Fausto avista Margarida e por ela se apaixona. Fausto exige a Megistófeles a presença de Margarida e o demônio usa-se de retórica para fazer Fausto de bobo. Segue-se um quadro no quarto de Margarida, onde Mefistófeles esconde uma caixa de Jóias. Margarida chega no quarto e canta aquele que é um dos poemas mais famosos de Goethe em língua portuguesa, com 7 traduções diferentes até onde minhas pesquisas foram efetivas. A Canção do Rei de Tule, que também é uma ária da ópera francesa Fausto. Esse poema já havia sido publicado em outro livro de Goethe, e é republicado em Fausto. Isso também contribui para aumentar a aparência de que Fausto é um grande recorte e colagem da produção de Goethe em mais de 30 anos (que demorou compondo essa obra). Eis a canção na tradução de Castilho:
Reinava em Tule algum dia
um bom Rei tão fino amante,
que até morrer foi constante
à dama com quem vivia.

À hora do passamento
deixou-lhe ela um vaso d’oiro,
que foi do Real tesoiro
o mais falado ornamento.

Punham-lho sempre na mesa;
só por aquele bebia;
e o choro que então vertia
causava a todo tristeza.

Vendo o seu termo chegado,
repartiu pelos herdeiros
os bens, té aos derradeiros,
excepto o vaso adorado.

Foi isto em jantar de mágoas
que El-Rei deu à fidalguia,
em torre herdada que havia
ao rés das marinhas águas.

Como El-Rei houve bebido
o seu último conforto,
co’o braço já quase morto
levanta o vaso querido,

e por não deixá-lo ao mundo,
da janela ao mar o atira.
Ondeia o vaso, revira,
enche-se, e desce ao profundo.

No mesmo triste momento
em que o vaso se abismava,
o Rei seus olhos cerrava,
soltando o último alento.
 E aqui em uma versão um pouco mais decente, feita por Antero de Quental:
Era uma vez um bom rei
Em Tule, essa ilha distante,
Ao morrer, deixou-lhe a amante
Um copo de oiro de lei.

Era um copo de oiro fino
Todo lavrado a primor;
Se fosse o cálix divino
Não lhe tinha mais amor.

Seus tristes olhos leais
Não tinham outra alegria:
E só por ele bebia
Nos seus banquetes reais.

Chegada a hora da morte
Põs-se o rei a meditar
Grandezas da sua sorte,
Seus reinos à beira-mar.

Deixava um rico tesoiro,
Palácios, vilas, cidades;
De nada tinha saudades,
A não ser do copo de oiro.

No castelo da devesa,
Naquelas salas sem fim,
Mandou armar uma mesa
Para o último festim.

Convidou sem mais tardar
Os seus fiéis cavaleiros,
Para os brindes derradeiros
No castelo à beira-mar.

Então, vazando-a de um trago,
E com entranhada mágoa,
Pôs nas ondas o olhar vago
E atirou a taça à água.

Viu-a boiar suspendida,
'Té que as ondas a levaram
Os olhos se lhe toldaram,
E não bebeu mais na vida!
E a minha tradução ruim para o primeiro verso (seguida do "original em parênteses"):
Em Tule vivia um rei (Es war ein König in Thule)
Que, fiel, a sua dama (Gar treu bis an das Grab)
Uma taça de ouro em lei (Dem sterbend seine Buhle)
Deixou-lhe na eterna cama. (Einen goldnen Becher gab.)
Tá legal, chega de poesia lírica. Me desculpem as divagações, é que sou tão fã de poesia que me deixei levar... Voltando ao drama...

Pulando uma série de episódios menos importantes (mas nunca sem importância, mas como isso é uma resenha não posso falar de todos os inúmeros episódios de Fausto), Mefistófeles arruma uma maneira de aproximar Margarida e Fausto, aproveitando a morte do marido de Marta (amiga de Margarida), pretendendo usar Fausto como testemunha da morte (apesar de nenhum dos dois terem estado no local da morte, não duvido de Mefistófeles, afinal, de morte ele entende). Há entre Fausto e Mefistófeles um diálogo que ainda está muito atual:
     FAUSTO
É previdente a mulherzinha;
mas então claro está que antes da coisa,
temos de ir ver em Pádua a sepultura.
     MEFISTÓFELES
Santa simplicidade! O que é preciso,
é jurar que se viu,
     FAUSTO
                                Se não me alvitras
coisa melhor, gorado está o ajuste.
    MEFISTÓFELES
Beatíssimo varão! Gosto do escrúpulo.
Pois nunca nunca, em toda a sua vida,
deu testemunho falso?
                                    Que de vezes
não haverá, com magistral entono,
coração firme e intrépido semblante,
declarado o que é Deus! aberto o arcano
do mundo e das míriades dos entes
que o povoam! do homem, co’o sem conto
de afectos, de paixões, de pensamentos,
que n’alma e coração lhe tumultuam!
Meta, bem dentro, a mão na consciência,
e diga-me se tinha dessas coisas.
mais noção que da morte do Espadinha?
     FAUSTO
És, foste, e hás-de ser sempre um mentiroso,
e um sofista de marca.
     MEFISTÓFELES
                                       É isso: ápodos,
porque antevejo o que o Doutor não pesca:
que amanhã, por exemplo, o escrupuloso
há-de enganar, jurando-lhe mil honras,
e amores mil, a pobre Margarida.
     FAUSTO
E a-la-fé que não minto em protestar-lhos.
[...]
Seque-se a conquista de Margarida. Mefistófeles também conquista Marta, o que não dá em nada e nem é falado na obra. Há um interessante diálogo sobre religiosidade, que, longe de ser puro apologismo ou sofisma é deveras interessante. Há um afastamente de algum tempo (o tempo da diegese da peça é algo muito dificil de se tira) entre Fausto e Margarida. É uma das partes de maior lirismo amoroso da obra. Os dois se reencontram e planejam cosumar o amor. Margarida conversa com outra amiga sobre isso, e a amiga repreende. Aí sai mais uma passagem que ainda se mantém bem atual e bem coerente com a cultura brasileira:
MARGARIDA, ()
(Tomando também da fonte o seu cântaro, e partindo-se com ele para casa, em direcção diversa da de Luisinha)
Também eu no meu tempo, em vendo moça errada,
logo a punha por monstro: a língua era uma espada,
e feita eu própria ré de atroz descaridade
benzia-me, e ficava impando de vaidade!...
E hoje... incursa no mesmo!!
(Após alguns momentos)
                                              Oh! Deus! mas quem podia
livrar-se de um prazer, que as pedras fundiria?
[...]
 Segue-se mais um poema de Goethe que não pertencia à fausto, e logo depois o monólogo de Valentim (irmão de Margarida, e não, não me esqueci de falar sobre ele, Valentim só aparece agora e só depois ele é apresentado como irmão de Margarida, sim, a leitura de Fausto é meio confusa), seguido do confronto entre Fausto (ajudado por Mefistófeles) e Valentim, que culmina na morte do segundo. A próxima cena é uma sombria cena naa Igreja, no funeral de Valentim, com a presença de espíritos.

As ultimas cenas são as mais estranhas da dramaturgia. Primeira é uma mistura caótica de personagens aparecendo e agindo como num baile. A outra cena é tão mais estranha está fora e dentro da peça (Áureas Núpcias de Oberon e Titânia - Intermezzo). E vocês pensavam que a poética ultrafragmentária surgiu apenas no modernismo? Essa passagem me lembra as decidas ao inferno do Guesa de Sousândrade.

E por fim, depois de um diálogo entre Fausto e Mefistófeles, Fausto entra na prisão para buscar a sua amada que foi presa por matar a mãe e o filho depois de enlouquecer (e não, também não esqueci de falar sobre isso). Essa cena é sombria e sublime. Termina com a dicotomia entre a condenação e a salvação. Termina a obra mas não a história de Fausto. O livro termina com um gostinho de quero-mais, entretanto, todos sabem que a "Segunda Parte da Tragédia" nada tem de ligação com a primeira, mas é uma série de mais outras passagens de incompreensível conexão definitiva para o nosso pensamento.

Fausto é uma Obra Prima e tem motivos para estar no cânone e influenciando o pensamento até os dias de hoje. Uma obra magnífica, embora difícil. A tradução de Castilho deixa muito a desejar no quesito "lirismo". O estilo de Castilho é falso, plástico, granítico. Há na tradução de Castilho algumas passagens magníficas, mas outras são tão de mal gosto que não merecem nem ao menos ser comentadas. Apesar de ser uma obra dramática, presta mais ao papel de ser "lida como teatro" do que "encenada como teatro". A nota do livro só é mais baixa pois analiso o livro como um todo (de produção gráfica, prefácio, conteúdo à tradução), e a tradução de Castilho deixou a desejar um pouco.

Esse livro é um livro bônus do Desafio Literário do mês de Junho. A tradução de Castilho pode ser adquirida gratúitamente no site do Domínio Público ou da Universidade de Aveiro. O livro pode ser achado facilmente em sebos e livrarias, em outras traduções. Há pelo menos 5 traduções integrais da primeira parte do Fausto em português (sem incluir uma do Fausto Zero [Urfaust] pela Christine Röhrig).

Nota do Elaphar: 9,6

Edição Lida:
GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto. Prefácio de Otto Maria Carpeaux. Trad: António Feliciano de Castilho. São Paulo: W. M. Jackson, 1960, 323p. XXXVp. (Clássicos Jackson, v.15)

3 comentários:

  1. Ganhamos aqui uma aula de análise literária...Como o DL tem me feito aprender um pouco. Não tudo. Não dá para saber e querer tudo...rs Lida e encenada como teatro, expressões cujo sentido prático ainda procuro entender...valeu!

    Beijocas

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  2. Excelente texto! Verdadeiramente uma aula! Mais me restou uma pequena questão: qual a melhor, ou mais recomendada tradução da obra para o português?

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  3. Isso vai depender das suas necessidades. A mais poética é a de Castilho, no entanto, é indireta (via francês), muito antiga e só da primeira parte, fora os exageros dela. A mais indicada, por ser integral, direta e bastante limpa, é a do meu conterrâneo Sílvio Meira...

    Enfim, é um livro genial.

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