quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Desafio Formas Fixas - Robert Browning

Desafio Formas Fixas de Poesia (4 – DRAMA EM VERSO)

The Complete Works of Robert Browning (Ohio/Baylor) Vol. 4 | Contendo:
A Blot in the 'Scutcheon
Colombe's Birthday
Dramatic Romances and Lyrics
Luria


Apesar de escolher concluir o desafio no modo Hard, frequentemente dou um “jeitinho brasileiro” no desafio. O fato é que apenas metade do livro efetivamente está sendo lido para o desafio (Colombe's Birthday e Luria), enquanto o resto na parte é releitura. Aliás, Dramatic Romances and Lyrics sequer é um drama. Mas claro que podemos pensar que eu estou lendo dois dramas em verso (de fato, são dois livros separados) e não meio livro. Mas passemos para a resenha.

Poucas coisas são unanimidades na imensa crítica ao poeta Robert Browning. O fato de que Browning fracassou miseravelmente como dramaturgo, se não é uma unanimidade, é sustentado pela maioria dos críticos. O que todos concordam é que a genialidade do escritor e sua grande obra está na poesia, e a maior parte dos críticos apontam as obras Men and Women (1855), Dramatis Personae (1864) e The Ring and the Book (1868-9) como a coroa do gênio de Browning. Mas ainda não se pode ignorar o teatro do escritor, tanto pelo fato de que ele escreveu uma boa quantidade de peças teatrais – oito, para ser exato, três delas frequentemente tidas por poesia e não teatro.

Se alguém quiser compreender porque o escritor é frequentemente tido como mal dramaturgo, basta ler A Blot in the 'Scutcheon (1843), mas primeiro vou fazer uma breve contextualização. O escritor iniciou a carreira como dramaturgo com o drama histórico Strafford (1837), encenada no mesmo ano pelo ator-empresário Macready. Se Strafford foi um sucesso ou fracasso estrondoso é uma questão de debate: embora a maioria dos críticos toma Strafford como tentativa fracassada (tanto pela sua qualidade como recepção), críticos como Chesterton e Cramer têm uma visão diferente da recepção da obra e críticos como McCormick são mais gentis em relação à qualidade da peça. A questão é que, ao menos na minha opinião, Strafford mostra um “futuro dramaturgo” completamente promissor – é uma estreia superior a Catalina, de Ibsen e mais experimental que Platonov, de Tchekhov, porém o fato é que Browning nunca escreveu um Pato Selvagem ou um Jardim das Cerejeiras. Porém a relação com o empresário começou a ficar problemática. Para além do stress da produção dramática (e da insistência de Macready de tornar o texto mais ordinário), Browning escreveu mais duas peças para o teatro de Macready, peças essas que foram rejeitadas depois de muita discussão. A transformação entre Strafford e A Blot in the 'Scutcheon é sintomática: o poeta se esforça para criar uma obra que se torne popular para o teatro vitoriano da época, o que significava muito convencionalismo de capa-e-espada e um melodrama ralo. A Blot é a encarnação dessa transformação defectiva gerada pele pressão do público teatral, e a prova de que, no fim das contas, Machado de Assis estava certo ao dizer que um grande dramaturgo não floresce sem um público adequado.

O maior problema da peça (A Blot) é que seu enredo é simplesmente absurdo e não convincente. Os personagens (com uma exceção) não são desenvolvidos satisfatoriamente, e incomodam o leitor por agirem completamente sem vontade e aparentemente conforme suas próprias naturezas. Thorold não quer matar Mertoun, mas o faz, ou melhor, Mertoun se deixa matar sem razão satisfatória. O relacionamento secreto e fora do casamento de Mildred e Mertoun também é estranho, e aparentemente incoerente com as atitudes que ambos possuem em relação a Thorold. Mertoun, por exemplo, não aparenta querer manter os encontros ilícitos com Mildred, não parece desejar pedir sua mão ao irmão Thorold (embora o faz porque é “obrigado”, aparentemente pela exigência do enredo), nem demonstra vontade nenhuma de perder a vida para um oponente que sequer o quer matar, mas o faz ainda assim porque “deve”, e ainda por cima, como último pedido, convence a Thorold que conte suas últimas palavras a Mildred, que “verdadeiramente ama” mesmo sabendo que isso a matará, o que também acontece. No final, os três personagens cometem um suicídio trágico e bisonho (Mertoun se deixa matar, Mildred morre de sofrimento e Thorold se envenena após tudo isso) que nem é grandioso ou “fatídico”, de modo que uma pitada do velho e ordinário bom-senso teria evitado. Para piorar, as entidades “ação” e “personagem” parecem tão completamente sem relação uma com a outra que ambas as entidades parecem apenas arbitrariamente postas no papel.

Guendolen é de longe a melhor personagem da obra, ou, ao menos possui alguma personalidade e as poucas boas linhas do drama, mas isso só pude notar agora, na minha segunda leitura. Isso, contudo, está ainda mais próximo de um defeito que uma qualidade, pois Guendolen e o marido Austin não fazem a menor diferença na peça. O comentário de Guendolen no primeiro ato é completamente aparte do resto do drama; as opiniões que ela apresenta a Mildred sobre Mertoun são completamente irrelevantes devido Mildred já ter uma opinião formada e invariável sobre o amante; o apoio moral que Guendolen dá a Mildred desfalecida não acrescenta nada ao desenvolvimento de nenhuma personagem exceto de si própria, e a sua descoberta por dedução do caso é completamente inútil pois não muda o curso da ação (Thorold vai descobrir por conta própria de modo independente poucas linhas depois); e o conselho de Guendolen a Thorold é, além de repetido, francamente ignorado. Guendolen é a única personagem desenvolvida e com aparência de realidade em toda a peça, mas ela é simplesmente irrelevante, de modo que se não existisse não faria a menor diferença para a história. Mas é Guendolen que possui tal maliciosa e proto-feminista afirmação interrompida:
He's proud, confess; so proud with brooding o'er
The light of his interminable line,
An ancestry with men, all paladins,
And women all . . .
Também é Guendolen que, no momento de dificuldade demonstra empatia, e a única para quem valores convencionais vazios significam menos que a emoção (amor e amizade, por Mildred, no caso). A passagem é longa (Ato II, v.323-360), mas provavelmente é a melhor sequência de 40 versos de todo o poema. Talvez a única decente.

Apenas como curiosidade, Charles Dickens amava essa peça. Aliás, enquanto Macready e John Forster duvidavam da peça Dickens tinha a absoluta convicção de que era uma bela obra, afirmando:
A peça de Browning me atirou em uma perfeita paixão do sofrimento. […] Ela é cheia de Gênio, pensamentos naturais e elevados, vigor profundo e ainda assim belo e simples. Não conheço nada, em nenhum livro que li, que me afete tanto quanto a recorrência de Mildreed ao “I was so young – I had no mother”. […] Eu juro que isso é uma tragédia que deve ser interpretada, e deve ser por Macready… E se disserem para Browning que eu a vi, conte também que eu, do fundo do coração, acredito que nenhum homem vivo (e nem muitos mortos) podem produzir tal obra.
E provavelmente por esse comentário a peça foi encenada, mas essa encenação foi responsável para destruir a já frágil amizade entre o poeta e o produtor. Sob vários aspectos, a produção foi um grande desastre, mas isso diz respeito ao histórico da première inglesa. A obra apesar de suas óbvias fraquezas foi muito popular, e foi e continua sendo a única peça de Browning que vez ou outra é encenada, e foi representada ao menos uma vintena de vezes durante a vida do escritor. A peça seguinte que ele escreveria já não seria para Macready.

Colombe's Birthday foi enviada para que Charles Kean representasse, e para a surpresa de todos os críticos foi prontamente aceita. Como a obra só poderia ser encenada no ano seguinte (1845) o poeta ficou impaciente, e desejou publicá-la imediatamente. Com isso, a peça só seria representada apenas em 1853 por Helen Faucit, e foi muito bem recebida. Para Browning e sua esposa, essa recepção favorável foi puro succès d'estime, já que, como bem nota EBB os atores representaram de modo miserável. Apesar disso, Colombe's Birthday me surpreendeu bastante, por várias razões.

A primeira e mais importante é bastante óbvia: depois de um início experimental com Strafford, Pippa Passes e King Victor and Charles, o esforço do poeta em escrever segundo as convenções foi de ruim (Return of Drusses) a medonho (A Blot). Após acompanhar esse desenvolvimento da carreira dramática de Browning, é realmente difícil esperar qualquer coisa decente que o poeta faça segundo as convenções (por si só ruins) do teatro da época. Colombe's Birthday é bem mais que decente, embora moldada em todas as convenções do período.

Como dito, ela não deixa de ter suas falhas como drama: é formalmente convencional, e as convenções do teatro vitoriano não eram as melhores, e a resolução embora faça grande diferença na moral da história não faz muito para o drama em si. Colombe no fim tem de decidir entre desposar Valence ou Berthold, ou mais especificamente, entre o amor e o poder.
Alerta!!! Esse texto pode conter spoilers como o fato de que no final Colombe escolhe Valence e perde todo o seu ducado para o príncipe Berthold... mas no fim, você provavelmente nunca vai ler ou ver essa peça encenada então provavelmente isso não faz a menor diferença... agora que você já sabe disso, pode continuar lendo o texto sem preocupações...
No final das contas, sentimos que não faz a menor diferença escolher um e outro. O grande tema e da peça é a separação radical entre o poder e amor, e a necessidade das pessoas em agir de acordo com uma escolha. Enquanto as escolhas de Hamlet e Macbeth são decisivas para a composição das suas peças (afinal, se eles optarem por não matar seus oponentes não há peça), a de Colombe é mera questão de gosto. Poderíamos até desgostar se Colombe escolhesse Berthold (personificando o Poder) em vez de Valence, mas o fato é que se fosse assim a peça ainda existiria, seria a mesma e com o mesmo valor.

Outro problema que notamos é o excesso de um estilo que emula o elizabetano, que obviamente já era velho e desgastado no período. Isso causa a impressão de que a obra fica bem melhor lida que efetivamente encenada com essa linguagem e estilo. Contudo, eu fui um leitor da peça, e como não vi nenhuma improvável representação dela, é como leitura que tenho de encerrar a minha análise.

Como uma peça literária, Colombe's Birthday, é fina, delicada e colorida. Diferente de qualquer outra peça teatral que Browning escreveu (mesmo Pippa Passes ou A Soul's Tragedy, que são bem superiores) os discursos dos personagens parece excepcionalmente adequados. As imagens e dicção usadas por cada personagem são muito bem trabalhadas, e lembrarão muito os futuros monólogos em verso branco do poeta. O uso de imagens florais para qualificar as várias características da duquesa é brilhante, mas é difícil de imaginá-las comunicando efetivamente durante a performance. Os personagens são mais ricamente construídos e variáveis, e não são amorfos ou falsos como os de A Blot. Colombe não se confunde com os servos, Valnce e Berhold são diferentes em caráter, sentimento e dicção, e Melchior se distingue de outros servos como Sabyne ou Guilbert, que também não se assemelham. Colombe's Birthday não é uma obra prima da dramaturgia, porém é uma obra bastante competente, talvez a mais competente já escrita segundo um padrão e nível tão baixos de expectativa dramática.

Dramatic Romances and Lyrics não é, como as outras, uma peça teatral. É a segunda coleção de poemas que Robert Browning escreveu e publicou. Apesar de não ser um livro tão popular como Dramatic Lyrics ou Men and Women (exceto pelo poemeto Home Thoughts, from Abroad), é muito bom lê-lo isoladamente para compreender melhor o desenvolvimento do poeta. Explico: estou acostumado a ler os poemas de Browning segundo a ordenação final que o poeta deu, em que reorganiza os poemas das três primeiras coleções em três categorias Lyrics, Romances e Men and Women.

Neste livro vemos muito bem todas as grandes características do gênio do poeta. Um bom monólogo rimado? Confere (Pictor Ignotus). Um bom poema narrativo? Confere (The Glove). Um bom monólogo dramático em verso branco? Confere (Saint Praxed's Church). Um poema com ritmo frenético e cantável? Confere (How they Brought the Good News from Ghent to Aix). Um poema que te faz pensar “mas que diabos de ritmo é esse”? Confere (The Lost Leader). Um poema que não dá para contar nem o primeiro verso? Confere (Now that I trying thy glass mask tightly, em The Laboratory). Rimas estrambólicas? Confere (já chego lá).

De longe, o que mais chama nesse volume é a qualidade das rimas. No volume de poesias anterior já possuíamos alguns exemplos (Adela/May, em Count Gismond) mas eram tímidos; em Dramatic Lyrics as rimas soavam tão naturais (Soliloquy of Spanish Cloister) ou praticamente desapareciam com a leitura do poema (My Last Duchess). Aqui nem sempre é o caso. Eu realmente não sei que tipo de pronúncia macabra rima Chablis com Rabelais (Sibranus Schafnaburguensis), mas alguns casos isso chega a ser problemático. Sintomático é The Flying of the Duchess, que é difícil de seguir. Não porque é um poema truncado, ou hermético, mas as rimas chamam tanto a atenção e o ritmo impulsiona elas, que a mera pronunciação forçada delas (exigida pelo ritmo) atrapalham a leitura mesmo das frases simples. Por exemplo:
when we've lost the music,
Aways made me – and no doubt makes you – sick.
A frase é completamente simples, mas a pronúncia “YOUsick” impulsionada pelo ritmo e rima quase nos faz perder o ponto. E não é uma instância isolada. Apenas nos últimos 100 versos do poema (que tem 915) olha o que consigo contar: “visit, i've/inquisitive”, “want here/frontier”, “last her/plaster”, “ins-and-outs/thin sand doubts”, “guarantees/arrant ease”, “went trickle/ventricle”, “inherit/prefer it”, “sorry on/morion”, “Duke rust/blue crust”, “travel in/javelin”, “indue/pinned you”, “ship sees/Gipsies”, “sperm oil/turmoil”, “news of her/Lucifer”, “wreathy hop/Aethiop”, “flaccid dent/accident”, “four-year-old/Berold”, “see-saw/Esau”. Isso porque fiquei com preguiça de copiar todos…

Acho que no geral, Dramatic Romances and Lyrics, como obra intermediária entre o inicio da carreira poética e a grande obra é uma boa introdução à poesia do escritor. Também possui um punhado de suas melhores obras, que às vezes são esquecidas em detrimento de outras, como Pictor Ignotus e France and Spain. Também é curioso notar que 3 dos 5 melhores poemas do livro (Pictor Ignotus, Saint Praxed's Church e The Confessional) são anti-católicos. Browning parecia ter um grande talento para falar mal da Igreja de Roma, hein, o que é ainda mais engraçado quando alguns dos principais admiradores sinceros do poeta (Chesterton, Raymond, provavelmente Pessoa e eu) foram católicos.

O último drama eu realmente não sei o que falar sobre. É simplesmente fraco. Os personagens sequer parecem reais, embora o evento seja histórico, aparenta mais ser uma projeção de Luria, o personagem principal, assim como todos os outros personagens. De certo modo, isso é um monodrama, mas não é poético, tem base dramática muito frágil e não convence nem como história. O ponto mais grave é que, embora tudo no drama esteja com a finalidade de desenvolver e construir Luria como personagem, nada temos de construído em seu caráter. Ao que tudo indica, o próprio poeta não gostava muito da obra, de modo que eu também me isento da responsabilidade de gostar dela também. Como dizia Auden, faz mal para o caráter falar mal de livros ruins sem nenhuma qualidade. E completo: ainda mais um de um autor tão genial como Robert Browning.

Ah, não tem mais nota... esse Blog está morto, e não tenho interesse em ressuscitá-lo.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Lamentações de Jeremias - Anônimo

Mais um livro lido da Bíblia Cristã, dessa vez para o desafio Literário, em sequência à leitura do Livro de Jeremias, lido em Fevereiro. Esse é um dos menores livros da primeira parte, e não é própriamente histórico, mas construído em cima de um acontecimento histórico e catastrófico para o povo hebreu, que foi a destruição da nação de Israel e exílio na Babilônia. Já é um hábito, mas só para alertar vai o tão repetido aviso:
Alerta importante: Eu estou lendo os Lamentações de Jeremias como um texto LITERÁRIO, não RELIGIOSO. Qualquer personagem, acontecimentos e até mesmo Deus estão sendo vistos aqui como PERSONAGENS e TRAMAS literários puramente. Não está em cheque a religião, mas somente a literatura.
Não consigo compreender como nunca havia lido esse texto. É um dos menores da Bíblia, situado entre os livros proféticos, no entanto ficaria mais bem situado entre os poéticos, assim como os Salmos de Salomão. Sem dúvidas é o livro mais poético e mais assustador que já li dessa compilação.

O livro começa falando sobre a destruição da terra de Judá, assim como vai narrando com poeticidade e crueldade incomum toda a desolação, material e espiritual, do povo. O assassinato dos reis, dos velhos; a expulsão, o exílio babilônico, a escravidão e fome do povo, entre outras catástrofes, narradas de modo quase apocalíptico. A narração, a todo o momento, vem coberta de uma crítica agressiva contra Deus, que causou toda essa destruição, escravização e violência.

O livro é profundamente ambíguo. Por um lado o povo compreende sua culpa, mas critica Deus pela punição e por não lhes dar ouvidos. O povo compreende a piedade e miséricordia divina, mas Deus também possui ira tão infinita quanto misericórdia. O próprio conceito de misericórdia vem como ira impiedosa contra os inimigos.
Quem poderá falar e fazer acontecer, se o Senhor não o tiver decretado?
Não é da boca do Altíssimo que vêm tanto as desgraças como as bênçãos?
Como pode um homem reclamar quando é punido por seus pecados?
Examinemos e submetamos à prova os nossos caminhos, e depois voltemos ao Senhor.
Levantemos o coração e as mãos para Deus, que está nos céus, e digamos:
"Pecamos e nos rebelamos, e tu não nos perdoaste.
Tu te cobriste de ira e nos perseguiste, massacraste-nos sem piedade.
Tu te escondeste atrás de uma nuvem para que nenhuma oração chegasse a ti.
Tu nos tornaste escória e refugo entre as nações.
Todos os nossos inimigos escancaram a boca contra nós.
Sofremos terror e ciladas, ruína e destruição".
Lamentações 3:37-47 (Nova Versão Internacional)
 Ou então:
Olha para eles! Sentados ou em pé, zombam de mim com as suas canções.
Dá-lhes o que merecem, Senhor, conforme o que as suas mãos têm feito.
Coloca um véu sobre os seus corações e esteja a tua maldição sobre eles.
Persegue-os com fúria e elimina-os de debaixo dos teus céus, ó Senhor.
Lamentações 3:63-66 (Nova Versão Internacional)
 É um dos mais contundentes livros sobre a ira de Deus e a ira contra Deus. Muitas de suas passagens são assustadoramente belas, o que é muito comum na escrita de textos em tempos difíceis, como o Salmo 137, as poesias de Paul Celan ou os textos do nosso período ditatorial.

Há no mínimo algumas coisas interessantes que mostram, entre outras coisas, a diferença radical entre o pensamento judaico e o cristão. Pode-se perceber por exemplo que não se culpava algum Diabo todo o mal do mundo, principalmente porque aos judeus a ideia de Diabo era estranha, no entanto, todo o mal do mundo era causado pela ira divina. Deus continha todo o bem, tal qual continha todo o mal. O mal era muitas vezes até necessário, não só como punição, mas como disciplina. Percebe-se nas Lamentações essa dualidade do mal.

As lamentações diferem significativamente de capítulo a capítulo, e como as traduções da bíblia, tradicionalmente, buscam conservar prioritariamente o conteúdo "conceitual" e pouco buscam traduzir o estilo (só sei de um caso diferente, que é as transcriações bíblicas de Haroldo de Campos), pouco podemos prever do belíssimo estilo original que esses poemas contém. Uma verdadeira pena.

Sem dúvida é um exelente livro, que deveria ser lido por todos, independente da crença religiosa ou arreligiosa. É fácil de ser encontrado, pois se encontra em qualquer Bíblia Cristã ou Tanakh judaico. O número de traduções é tamanha, e as diferenças entre elas também.

domingo, 15 de abril de 2012

Clepsydra - Camilo Pessanha

Para o DL desse mês eu pretendia ler um autor de língua portuguêsa das colonias orientais (particularmente Macau e Timor-Leste), mas apesar da língua, simplesmente não consigo achar nenhum livro de escritores como José Silveira Machado e Venceslau de Morais (de Macau), ou Fernando Sylvan e Luís Cardoso de Noronha (do Timor-Leste). É incrível a incomunicabilidade entre os países lusófonos, apesar de falarem a mesma língua... é mais fácil ter acesso a um livro de um escritor sueco que de um escritor de Macau.

Acho que quase todos conhecem Camilo Pessanha, que é um dos mais representativos escritores de língua portuguesa. Era leitura obrigatória na época que fiz vestibular, mas como nunca leio o que sou obrigado a ler deixei de mão. Ainda bem, pois ele é um escritor incrível.

Nasceu em Portugal, mas trabalhou e morreu em Macau, de onde escreveu a maior parte de seus poemas. Sua verdadeira inspiração também adquiriu em Macau: o ópio. Camilo Pessanha é um caso particularmente interessante, seu livro (Clepsydra) foi lançado enquanto o poeta ainda vivia, e o título foi por ele escolhido, mas nunca chegou a ler seu livro e nem ao menos sabia que poesias havia nele. Foi organizado por outra pessoa, e como o poeta só escrevia drogado, nem sabia ao menos o que escrevia. Como poeta da escola simbolista, é muito prório escrever drogado...

A morte e a alucinação são temas super recorrentes no livro, desde seu primeiro poema (Inscripção), que é um ótimo exemplo da poética do autor:
INSCRPÇÃO
Eu vi a luz em um paiz perdido.
A minha alma é languida e inerme.
Oh! Quem podesse deslisar sem ruido!
No chão sumir-se, como faz um verme…
O livro é dividido em duas partes: Sonetos e Poesias. Nos Sonetos, Camilo mostra-se um grande sonetista da língua, como se observa nesses dois sonetos:
Esvelta surge! Vem das aguas, nua,
Timonando uma concha alvinitente!
Os rins flexiveis e o seio fremente…
Morre-me a bocca por beijar a tua.

Sem vil pudôr! Do que ha que ter vergonha?
Eis-me formoso, môço e casto, forte.
Tão branco o peito!—para o expôr á Morte…
Mas que ora—a infame!—não se te anteponha.

A hydra torpe!… Que a estrangulo… Esmago-a
De encontro á rocha onde a cabeça te ha-de,
Com os cabellos escorrendo agua,

Ir inclinar-se, desmaiar de amor,
Sob o fervor da minha virgindade
E o meu pulso de jovem gladiador.
Quem polluiu, quem rasgou os meus lençoes de linho,
Onde esperei morrer,—meus tão castos lençoes?
Do meu jardim exiguo os altos girasoes
Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?

Quem quebrou (que furor cruel e simiêsco!)
A mesa de eu cear,—tabua tôsca de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
—Da minha vinha o vinho acidulado e fresco…

Ó minha pobre mãe!… Não te ergas mais da cova,
Olha a noite, olha o vento. Em ruina a casa nova…
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.

Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais.
Alma da minha mãe… Não andes mais á neve,
De noite a mendigar ás portas dos casaes.
E em poesias se encontram algumas das mais famosas do poeta, como as belíssimas "Arcadas do Violoncelo"...

Para quem gosta dos poetas simbolistas, Camilo Pessanha fica entre os melhores, talvez melhor até que nosso Cruz e Sousa (alguns vão considerar isso uma blasfêmia). Sua poeticidade é vigorosa, seu estilo é bem definido, sua poética é formalmente rigorosa, com alguns tour de force que nos parecem bastante naturais. Enfim, um dos maiores poetas da língua portuguesa.

Nota do Elaphar: 9,6
Edição Lida: PESSANHA, Camilo. Clepsydra. Projeto Gutenberg, disponível em: http://www.gutenberg.org/cache/epub/3498/pg3498.html.

domingo, 8 de abril de 2012

Antologia do Conto Húngaro (Org. e Trad. Paulo Rónai)

Mais uma leitura para o Desafio Literário de 2012, e o tema desse mês é Escritor Oriental. ... Alguns devem estar se perguntando porque diabos escolhi uma antologia de contos húngaros como literatura Oriental se, como todos devem saber, a Hungria fica no centro da Europa,. ao lado da Áustria e outros países como a Romênia e Ucrânia. Lógico que não perguntei para a equipe do DL a validade de minha escolha (descaso esse que me faz pensar que um dia ainda vou ser expulso do desafio...), e agora vou explicá-la.

Questões como orientalidade vs ocidentalidade são muito defíceis de por um ponto final. Na resenha passada mostrei um desses problemas, mais próprio da poesia, que é a multiplicidade de vozes resultante de um processo tradutório. Outros problemas podem aparecer, no caso de um artista nascer em um lugar mas ser artisticamente de outro (como o caso do húngaro Lizst, que nem ao menos sabia falar a língua de seu país, ou no caso da nossa Clarice Lispector, ou no caso do poeta português Carlos de Oliveira, nascido em Belém), ou ainda mais grave é do autor possuir a influência de dois lugares distintos (como Nabokov, Beckett, ou Eliot)  ou até mesmo pertencer ora a um lugar, oura a outro (como o Vieira português e o Vieira brasileiro, ou o Stephan Zweig austríaco e o Zweig brasileiro, ou o Rilke alemão e o Rilke francês... etc...). O que tenho percebudo nas resenhas desse desafio é uma série de escritores nascidos em países do extremo oriente (principalmente Japão), mas que pertenceram de fato (socielmente, espiritualmente, linguísticamente e, por quê não, literariamente) a outro país, geralmente de lingua inglesa. Nacionalidade envolve muito mais que lugar de nascimento, não fosse assim não teríamos escritores alemães e austríacos nascidos em Praga ou na Romênia ou escritores brasileiros nascidos na Ucrânia.

Agora, o que tem a Hungria de oriental? Tudo e nada! Para que a escolha possa ser compreendida, deve-se tomar algumas lições de história, genética e linguísticas, e como estou meio sem tempo, vou resumir ao máximo. Todos devem conhecer as histórias dos Hunos, que foram um povo oriental (da região que corresponde a China e Mongólia) que fez o maior estrago no ocidente na Era Romana. Os magiares vieram junto com os hunos, e se estabeleceram no lugar (alguns Húngaros acreditam que os magiares são descendentes dos próprios hunos). Portanto, o povo magiar é um povo geneticamente oriental, e a língua húngara, apesar do alfabeto latino, é, como se é de esperar, também uma língua oriental, da família de línguas uralicas. Se considerarmos a teoria linguística das línguas uralo-altaicas, o húngaro é do mesmo tronco das línguas turca, japonesa, coreana e das diferentes línguas da mongólia (daí o fato de que em húnguaro o sobrenome é dito antes do prenome, no caso do tradutor seria Rónai Pál ['honai 'pa:l], abrasileirado para Paulo Rónai). Portanto, os Húngaros são etnicamente e linguísticamente provenientes da Asia, porém deslocados ao centro europeu onde possuem um sério conflito identitário entre oriente e ocidente. Por um lado tentam preservar a sua cultura, por outro a aspiração ocidental. Conhecer a cultura, a história e a literatura da Hungria é conhecer o cerne do problema Ocidente/Oriente.

E convenhamos, a história da Hungria é uma das mais poéticas do mundo: povo oriental vivendo em meio a uma cultura estranha, cristanizada à força, esmagada politicamente pela Áustria, posteriormente pela Alemanha e supostamente libertada pela URSS, o que fez uma série de chagas nesse povo. Diga-se de passagem, alguns dos melhores contos desse livro relatam direta ou indiretamente o conflito identitário entre ocidente e oriente, ou os conflitos políticos e incoerência social.

O número de contos nesse livro é bem grande (30), tanto quanto as variedades de temática e estilo, o que torna muito difícil falar sobre todos eles. Ainda assim vou tentar ao menos escrever uma linha sobre cada conto. Os autores estão em ordem cronológica de nascimento, e é curioso que os últimos escritores morreram praticamente todos no mesmo período (1944-1945), no final da ocupação nazista.


O primeiro escritor é um representante do romantismo literário, e seu conto (Divertimento Forçado) é interessante por mostrar a pretenção da nobreza húngara ao ocidentalismo, já que o barão (personagem principal) mistura locuções francesas e abusa de galicismos no seu discuraso, e apesar disso, acaba entrando em contato com um ambiênte completamente húngaro, diferentemente do ambiente nobre que era mais propriamente parisiense ou vienense. Provavelmente  o autor não tinha em mente esse conflito ocidente/oriente como ponto importante da sua obra, diferente de Ady Endre, que é bem posterior, que em seu conto intitulado Chabachef, O assassino relata um homem que é dois, um Ocidental parisiense e um Oriental tradicional, sendo que um desses homens faz coisas que o outro jamais sonharia; é uma narrativa que todos deveriam ler.

Os dois contos de Mikszáth Kálmán são de ordem cômica e irônica, mas demonstram um grande conhecimento do interior dos seres humanos. O primeiro conto é uma resposta à teoria literária (não sei por que quase todo escritor odeia os críticos literários), enquanto o segundo  é uma divertida história tragicômica de um médico tentando convencer um paciente a amputar seu braço para sobreviver; pode parecer frívolo, mas a narrativa é muito divertida, profunda e bem construída. Gárdonyi Géza aparece na antologia com dois contos bastante diferentes, um mais mítico-alegórico, o outrocom uma carga de significado maior, e ambos bem diferentes, aparentemente, do que seria o estilo normal do escritor em seus romances históricos O Homem Invisível e Estrelas de Eger. Szomory Desö é talvez o mais ocidental da coletânea, mas não o único, e é um tanto tagarela; seu conto definitivamente não me cativou.

Heltai Jenö é um escritor alegre e também um tanto sombrio, que viveu muitos anos. Apesar dos dois contos dele serem bons (particularmente o A Morte e o Médico), não chega a ser um escritor genial, além de sua personalidade ser fraca; é muito francês, e infelismente, inferior à muitos franceses também. Ady Endre é dos maiores escritores húngaros, e seu conto, como já foi dito, merece grande destaque por retratar com genialidade o conflito oriente/ocidente dentro da sociedade húngara. Krudy Gyula é uma grata surpresa nesse livro, seu conto Uma das Histórias do Soldado Raso Harras Rudolf é incrível, e um anacronismo moderno que deveria colocar esse entre as pérolas da contística mundial; é talvez o melhor conto da coletânea.

Os dois escritores que se seguem (Molnár Ferenc e Móricz Zsigmond) mostram mais profundamente o homem húngaro, particularmente o despossuído. Zsigmond é o melhor dos dois, e seus 3 contos são obras primas, de um naturalismo moderado e bem estruturado. Bárbaros figura entre os melhores contos do livro. Podemos compreender muito da cultura do país por estes contos, e essa cultura nos parece muito antiquada, ao nosso olhar ocidental, o que mostra um grande atraso da chegada do mundo "capitalista ocidental" em algumas regiões da hungria, que mais parecem feudos medievais, ao mesmo tempo que as grandes cidades parecem uma nova Viena.

Bíró Lajos é um escritor original e interessante, mas seu conto fica meio apagado em relação a outros do livro. Kaffka Margit é a única mulher do livro, e ainda por cima descendente de tchecos. Seu conto fala da pobresa melancólica, sem perspectivas, enquanto o humorista Kosztolányi Desö já é bem mais otimista, apesar de sarcástico e irônico, e aparece com cinco contos na antologia, todos eles aparentemente sem um foco na narrativa, mas na em uma ideia ou concelho, quase uma coda em seus contos. Destaque para Auréola Cinzenta e Aventura Búlgara.

Szép Ernö é dito como intraduzível, e o próprio tradutor diz que escolheu um conto que não é dos melhores de sua produção em respeito à "impossibilidade" de verter outros. Apesar de tudo, seu conto Murglics mostra-se de qualidade.

Karinthy Friges é escritor alegre, outro humorista, e até satirista, e seus três contos se mostram muito agradáveis de se ler. Molnár Ákos tem como biografia uma das histórias mais comoventes do livro, mas seu conto é um tanto alegre (apesar de que não deveriamos rir) e, junto de Pap Károly (também morto no ódio nazista) escrevem dois dos contos mais bem realizados do livro (Um Almoço e Música, respectivamente). Mais do que a qualidade literária, a temática dos interesses e opressão, além de exploração em diferentes esferas, são os temas dos dois contos, sendo o primeiro uma narrativa do chefe em relação aos empregados, que devido uma incompreensão é quase anedótico, e o segundo mostra a exploração familiar, que faz um pai querer, sem sucesso, vender o filho por álcool. Os dois contos através do riso da situação mostram graves incoerências e atrocidades da sociedade. Ambos figuram entre os melhores contos. Mesmo valor social possui o conto de Gelléri Andor Endre, que poderia muito bem ser escrito no Brasil sem problemas.


Os dois contistas e contos que faltam (O Criminoso de Márai Sándor e Madelon, a cachorra de Szerb Antal) são de grande valor literário, mesmo sem ser propriamente sociais ou propriamente "húngaros" (no sentido nacionalista). O criminoso recebe destaque devido ao trabalho metalinguístico e bom aproveitamento dos clichés da literatura policial, e como paródia do gênero é a mais bem realizada que conheço.

Por fim, o que posso dizer sobre a edição? 3 dos maiores nomes das letras nacionais assinam esse livro: Paulo Ronai (organização, estudo, tradução e notas), Guimarães Rosa (introdução) e Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira (revisão); ou seja, não se pode reclamar de nada. É um trabalho feito com amor, e a capa, apesar de simples, exemplifica muito bem a "alma" do livro. Os problemas do livro são só os que são comuns à toda antologia e à todo livro de uma língua muito diferente da nossa: a diferença da qualidade dos textos, a apresentação do escritor por "amostragem", na maioria das vezes imprecisa, a vontade de querer ler mais do mesmo autor e saber que não possui nada ou dele publicado (dos escritores aqui presentes só sei do livro Os Meninos da Rua Paulo de Molnár e O Homem Invisível de Gárdonyi publicados no Brasil), e, por fim, a dificuldade de pronunciar, e por conseguinte memorizar, a maioria dos nomes próprios.

Recomendadíssimo, apesar de difícil de achar, é um livro indispensável para se ter em casa.

Nota do Elaphar: 9,8
Edição Lida: RÓNAI, Paulo (org). Antologia do Conto Húngaro. tradução e notas de Paulo Ronái. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1958.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Songs of Li-Tai-Pé from the Cancioneiro Chinês of Antônio Castro Feijó - Trad:Herbert Stabler

Para o DL 2012 resolvi ler esse livro, que é no mínimo um caso bizarro, que põe em dúvida algumas questões de autoria ou orientalidade. A primeira coisa que chama atenção é que, se o tema do DL é escritor oriental, por quê o nome de Antônio Castro Feijó, notável parnasiano português,  está na frente, ao lado de Herbert Stabler, como autor do livro? O caso é um tento complicado, já que, na verdade, o livro contem uma tradução inglesa de poesias chinesas da disnastia Tang, mas não uma tradução direta, mas sim uma tradução e recriação portuguêsa de Feijó, que por sua vez leu as poesias chinesas através de Le Livre de Jade de Judith Warton, que traduziu com auxilio de um chinês poesias para o francês; ou seja, essa é uma tradução inglesa da tradução brasileira da tradução francesa de poesias chinesas.

A literatura chinesa é, provavelmente, a mais rica do oriente, e talvez a mais rica do mundo, ao menos em verso (em prosa os povos semíticos ganham em tradição e qualidade). A dinastia Tang é das mais ricas, e é engraçado que a china também possui uma das mais antigas tradições de poetisas (ou poetas mulheres, se preferir), possuindo um volume monumental de produção feminina em versos.

Quanto à tradução, há muito mais atás desse simples ciclo de traduções sucessivas. Primeiro deve-se ver a importância que teve o Livre de Jade de Judith Warton (que lerei em breve) ne história da poesia ocidental. Um dos ideais do parnasianismo era o exotismo, e uma das formas de tê-lo era aproveitando temáticas orientais. A poesia, arte e povo chinês foi estremamente sedutora aos poetas da época, e o Livre de Jade foi um dos grandes responsáveis pelo conhecimento ocidental da poesia chinesa. Para se ter uma idéia, no brasil muitos poetas e prosadores falaram sobre a china e/ou a citaram em seus escritos, dentre eles Bilac, Raimundo Correia e até Machado de Assis (que traduziu alguns poemas do Livre de Jade).

Aí chegamos em Feijó. Como bom parnasiano que era, também ficou tentado a usar a china em sua obra poética, e assim como Machado de Assis, traduziu uma série de poemas do Livro de Jade, mas ao invés de apenas colocar como uma parte de um livro, lançou um livro inteiro com essas recriações. É importante mencionar que a ideia de tradução para esses poetas é muito diferente da que muitas pessoas tem: a tradução é um processo criador, onde fidelidade textual e até formal pouco importa comparado à expressão poética. Tanto Machado de Assis como Castro Feijó fizeram dessa poesia oriental uma parte de sua própria obra poética e filosofia poética, e é muito difício dizer até que ponto essas poesias continuam "chinesas" ou passam a "portuguesas". Isso sem contar o fato de que essas poesias passaram por quatro mãos (o poeta chinês, Judith Gautier, Feijó e o tradutor inglês Stabler).

As diferenças entre os textos é tão gritante que, por exemplo, a poesia "The Mandarin's Wives" é composta de 3 estrofes, cada uma com a voz de uma esposa do mandarim, enquanto na versão francesa de Judith o poema é "Les Trois Femmes du Mandarin" e possui quatro parágrafos, os três primeiros com as vozes das três mulheres  (a esposa, a concubina e a criada, não mais 3 esposas) e no último a voz do próprio mandarim. Mais interessante é perceber a diferença entre as descrições, como se pode perceber no seguinte trecho:
Comes an Hour, half sad, half sacred,
The Humming Birds flutter by,
Giving the Lips of the Flowers,
A tender Caress as they fly.

In the distance, his Skiff not moving,
The Fisherman, sunbronzed and tall,
Breaks the lake's silver surface,
As he draws in his Net with is haul.
    Li-Tai-Pé - The Fisherman

C'est le moment où les papillons poudrés de soufre appuient leurs têtes veloutées sur le coeur des fleurs.
Le pêcheur, de son bateau immobile, jete ses filets qui brisent la surface de l'eau.
    Li-Tai-Pê - Le Pêcheur
Percebe-se claramente a diferença de tom, linguagem até mesmo de descrições (que são mais frequentes na tradução inglesa, por ser bem maior que a versão francesa) e até mesmo na imagem e significação.

Eis aí o maior problema deste livro. Entendo que foi escrito para possuir uma significação isolada dos textos que deram origem a essa versão, mas o problema é que esse livro é fraco. A versão de Judith aparentemente (não a li, mas sei que foi feita em prosa) perde em poeticidade, e essa, apesar de ser em verso, não a ganha. Os poemas "chineses" que aqui aparecem se parecem mais um arcadismo ralo, só que sem pastores e ovelhas (mas mantendo as flores e as flautas).

O livro é dividido em 4 partes: Primavera, Verão, Outono e Inverno. As duas primeiras são completamente maçantes, com aquele mal lirismo de nosso arcadismo. O outono e inverno são melhores, mostrando um pouco mais os elementos que já conhecia da poesia chinesa. Diferente do que o nome sugere, não contém apenas poemas de Li-Tai-Pé, mas de vários outros poetas da dinastia Tang, entre eles Tu-Fu, meu favorito. Enfim, é um livro curto (apenas 24 poemas e um longo prefácio, totalizando umas 70 páginas) mas que não vale tanto a pena ler. Talvez a versão em portugês seja melhor, mas duvido!

Acho desnecessário mostrar exemplos de poesias, já que estão em inglês e o livro está em domínio público, assim como acho inútil traduzir (ou melhor, retraduzir) já que o texto já é uma tradução do português, que não pude encontrar.

Nota do Elaphar: 7,2
Edição Lida: FEIJÓ, A.C; StTABLER, J.H; Songs of Li-Tai-Pé from Cancioneiro Chinês. An intrepretation of Portuguese by Jordan Herbert Stabler. New York: Madison Square Press, 1922.
Related Posts with Thumbnails