segunda-feira, 27 de junho de 2011

Melhores do Semestre

Meu ritmo de postagem está muito fraco esses dias, mas isso é devido meu ritmo de leitura estar bastante intenso.

Vejamos agora os 5 melhores livros lidos (ou  relidos) no semestre por categorias:

Romance
- Lolita - Vladmir Nabokov (Biblioteca Folha) - Trad: Jório Dauster. Lido em Janeiro
- O Estrangeiro - Albert Camus (Record) - Trad: Valerie Rumjanek. Lido em Feveireiro
- O Tetraneto del Rei - Haroldo Maranhão. Lido em Abril.
- O Mestre e a Margarida - Bulgakov. Lido em Maio

Novela
- A Mulher Desiludida - Simone de Beauvoir (Nova Fronteira). Lido em Janeiro
- Tônio Kroeger & Morte em Veneza - Thomas Mann. Lido em Março
- A Volta do Parafuso - Henry James (Hedra). Lido em Maio.
- O Processo - Kafka. Relido em Maio
- O Homem de Areia - E.T.A.Hoffmann. Relido em Maio

Conto
- Memórias do Quintal - Alfredo Garcia (Paka-Tatu). Lido em Janeiro
- A Legião Estrangeira - Clarice Lispector. Lido em Fevereiro
- Papéis Avulsos - Machado de Assis. Relido em Março
- Histórias sem data - Machado de Assis. Relido em Abril

Poesia
- Melhores Poesias de Sousândrade - Seleção de Adriano Espíndola. Lido em Março
- Cromos - B.Lopes. Lido em Abril.
- Melhores Poesias de Mário Faustino - Seleção de Benedito Nunes. Lido em Abril.
- Ocidentais - Machado de Assis. Lido em Maio
- 33 Esperimentos e uma Suite - Sérgio Wax. Lido em Maio

Tradução
- Sonetos de Shakespeare: Faça você mesmo (Objetiva) - Org: Jorge Furtado. Lido em Janeiro
- Eneida - Virgílio (Jackson) - Trad: Odorico Mendes. Lido em Março
- 45 Sonetos de Shakespeare - Trad: Péricles Eugênio. Relido em Abril
- A Batalha de Maldon - Trad: Glauco Roberti. Lido em Maio
- Meus Poemas... dos Outros - Trad: Heitor P. Fróes. Lido em Maio

Não-ficção*
- Diário da Ilha - Lindanor Celina (CEJUP) . Lido em Fevereiro
- Beethoven - Richard Wagner (Jorge Zahar). Lido em Feveireiro
- Cartas ao Jovem Poeta - Rilke (L&PM) - Relido em Abril

Outros**
- Livro de Juízes (bíblico). Lido em Março
- 2 Epístolas aos Coríntios - Paulo de Tarso - Relido em Abril
- Fausto - Goethe - Trad: Feliciano de Castilho. Lido em Maio

* Não inclui livros teoricos (científicos ou didáticos).
** Inclui obras dramaturgicas, religiosas e livros de autoria e ficcionalidade dúbias. Não inclui livros parcialmente lidos.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Fausto - Goethe (Tradução de F. de Castilho)

Pintura de Eugène Delacroix
Estava quase pensando que já havia lido tudo o que havia de bom no genero teatral, mas sempre um texto novo pode nos trazer grandes surpresas. Goethe dispensa comentários: é o nome mais famoso da literatura alemã e um milagre na história da literatura, um dos poucos escritores que são geniais em todos os gêneros que escreve (no caso de Goethe os gêneros épico, lírico, dramático, novelístico, satírico, didático, epistolar e científico). A obra Fausto é de longe seu mais famoso trabalho, ao lado dos Sofrimentos do Jovem Werter, Wilhelm Meister e alguns poemas superfamosos como O Aprendiz de Feiticeiro (Der Zauberlehrling), O Erlkönig e a Dança Macabra (Totentanz).

O mito de Fausto é bastante recorrente na literatura (principalmente em língua alemã), e se baseia em uma figura histórica. Fausto era um sábio que pouco se sabe sobre sua vida, e mitologicamente crê-se que Fausto fizera um pacto com o demônio. Marlowe foi o primeiro a representa-lo em um texto de qualidade literária, mas no romantismo alemão centenas de escritores escreveram sua versão do mito. Mais recentemente temos a versão de Fernando Pessoa (Fausto, uma tragédia Subjetiva) e a versão de Thomas Mann (Doktor Faustus). Sem sombra de dúvidas, o Fausto goethiano é o mais famoso, e foi base para inúmeras adaptações (como a abertura de Wagner, a ópera francesa e o episódio do Chapolin Colorado).

Fausto é uma tragédia, contendo todos os elementos para ser considerada como tal, mas muito se critica quanto a obra Fausto ser ou não ser teatral. Em primeiro lugar há um "Prólogo do Autor", onde o autor fala sobre si e a obra, em seguida vem um "Prólogo no Palco" bastante metalinguístico, onde o Poeta, o Empresário e o "Gracioso" (Lustige Person, ou seja, bobo, palhaço) discutem sobre a criação e apresentação da peça. Além desses dois elementos fora do comum (que não são muito próprios do teatro), há um Intermezzo tão fragmentário e estranho (a lá Sousândrade) que sua encenabilidade é questionável. Desconsiderando esses elementos, a peça é absurdamente enorme para um texto teatral (a primeira parte da tragédia tem mais de 300 páginas), as instruções dramáticas parecem que foram escritas para ser lidas e não encenadas, e Fausto possui algumas cenas que fariam a cena da "Imolação dos Deuses" (de Götterdämmerung de Wagner) parecer uma peça escolar. Soma-se a tudo isso a dificuldade de compreender o texto, mas vamos por partes...

O livro começa com um soberbo prefácio de Otto Maria Carpeaux (a minha edição da Jackson Editores), que ajuda a esclarecer muitos pontos da obra que podem parecer obscuros, além de mostrar as absurdas diferenças entre "Fausto", uma tragédia" e "Fausto, segunda parte da tragédia". Lastimavelmente o livro não contém a "segunda parte" (que é uma obra autônoma), já que Castilho não a empreendeu traduzi-la. A esplicação de Castilho é simples: "extravagâncias absurdas [da segunda parte] são muito mais repugnantes ao bom senso". É importante notar que Castilho não entendia uma frase de alemão ao traduzir o Fausto, e portanto, traduziu por interposição, o que em poesia não é totalmente recriminável.

A obra começa no já citado "Prólogo no Palco", e segue para um "Prólogo no Céu" (que castilho considera já como início da peça [Quadro I]). Um coro de Anjos canta, quando o demônio (Mefistófeles) conversa com o Senhor, que lhe pede informações sobre o Fausto. Aí Mefistófeles resolve propor um desafio ao Senhor, que é prontamente aceito.
      MEFISTÓFELES
Quer Vossa Majestade uma apostinha?
Verá se também este se não perde,
uma vez que me deixe encaminhá-lo.
      O SENHOR
Deixo, enquanto for vivo. Onde há cobiças,
é natural o errar.
     MEFISTÓFELES
                              Muito obrigado.
Pois co’os vivos também é que me eu quero;
com defuntos embirro; o meu regalo
é tentar caras rechonchudas, frescas;
sou como o gato: de murganho morto
não faço caso; o meu divertimento
é correr e arpoar aos que me fogem.
     O SENHOR
Como queiras. Permito-te que o tentes.
Se lograres caçá-lo desbaptiza-o,
e inferna-o muito embora. Mas, corrido
fiques tu in æternum, se confessas
que o bom, dado que errar às vezes possa,
nunca nos sai da estrada, a recta, a nossa.
     MEFISTÓFELES
Bom. Não lhe há-de tardar o desengano,
Ganhei tão certo a aposta, como é certo
chamar-me eu Mefistófeles. Se eu vingo
na empresa, a palma do triunfo é minha.
Há-de se regalar de comer terra,
como a tia serpente.
 Depois parte para o inicio da tragédia propriamente dita, com um famoso monólogo de Fausto. Segundo Carpeaux, os jovens decoram passagens inteiras dos monólogos do Fausto na alemanha.
      FAUSTO (dessocegado, sentado numa poltrona de sola e pregaria de cobre, com a cabeça fincada nas mãos, e os cotovelos na mesa de estudo, na qual derrama luz frouxa um candeeiro aceso.)
Ao cabo de escrutar co’o mais ansioso estudo
filosofia, e foro, e medicina, e tudo
até a teologia... encontro-me qual dantes;
em nada me risquei do rol dos ignorantes.
Mestre em artes me chamo; inculco-me Doutor;
e em dez anos vai já que, intrépido impostor,
aí trago em roda viva um bando de crendeiros,
meus alunos... de nada, e ignaros verdadeiros.
O que só liquidei depois de tanta lida,
foi que a humana inciência é lei nunca infringida.
Que frenesi! Sei mais, sei mais, isso é verdade,
do que toda essa récua inchada de vaidade:
lentes e bachareis, padres e escrevedores.
Já me não fazem mossa escrúpulos, terrores
de diabos e inferno, atribulados sonhos
e martírio sem fim dos ânimos bisonhos.
[...]
Percebe-se que o Fausto de Goethe é inquieto, não quer saber muito, mas sim TUDO, missão fadada ao fracasso. Desde o início da narrativa me identifiquei muito com o personagem, entretanto, essa identificação vai se estinguindo no decorrer da narrativa (ainda bem). Segue-se uma bizarra cena onde Fausto conversa com um Espírito. Entra Wagner, sai o espírito. Wagner é um outro tipo de sábio, aquele que tanto Fausto quanto Goethe deploravam. Depois de mais um monólogo de Fausto, o protagonista tenta suicídio, mas ao ouvir sons da igreja ao lado (que não aparece no palco) desiste da ideia por conta dos sons lhe trazerem lembranças.

As próximas passagens são entre Fausto e Wagner numa rua (com um pequeno prólogo dos passantes), aí é que podemos compreender as diferenças de filosofia e objetivos dos dois personagens. Posteriormente, mais um monólogo de Fausto (é, ele fala mais sosinho que o Hamlet de Shakespeare), que está acompanhado de um cachorro. Nesse monólogo há a outra passagem famosa de Fausto, onde o personagem transforma o "No princípio era o verbo" ("Im Anfang war das Wort!") das escrituras em "No princípio era o Ato" ("Im Anfang war die Tat!", para Castilho Ação). O cachorro começa a metamorfosear-se (atrapalhando o monólogo) para enfim transformar-se em Mefistófeles. Segue-se o primeiro dos muitos diálogos entre Mefistófeles e Fausto.

É extremamente interessante a caracterização que Goethe dá ao diabo. Mefistófeles é bastante esperto, mas não aparenta. Mefistófeles é irônico, seco, até certo ponto cheio de graça. Depois de alguns diálogos, Mefistófeles fará uma proposta à Fausto: Fausto será jovem e o Mefistófeles o servirá na terra, porém, se Fausto ficar satisfeito Fausto deverá servir Mefistófeles no inferno.
    MEFISTÓFELES
                                        Então já pode
no pacto conchavar-se. O que eu lhe afirmo
é que estes dias que passarmos juntos
lhe hão-de por minhas artes dar tais gostos
quais os não teve alguém.
     FAUSTO
                                         Pobre diabo,
que hás-de tu dar-me? O espírito de um homem
como eu sou, foi jamais compreensível
aos da tua relé? Tens iguarias
que não matam a fome; oiro que fulge,
mas que igual ao mercúrio, escapa aos dedos;
jogo em que é certa a perda; uma beldade
que até nos braços meus soltando arrulhos,
já está piscando o olho ao meu vizinho;
pompas de glória, um fumo!
                                             O que eu preciso,
se o tens, são frutos a pender de copa
sempre frondosa, e que antes de apanhados
não tenham já por dentro o podre e os vermes.
      MEFISTÓFELES
Bem; tudo isso há-de ter; conte comigo
Desde agora, amiguinho, à rédea solta.
Folgar e mais folgar! Leva de escrúpulos!
Tudo quanto bem sabe, é permitido.
       FAUSTO
Se eu me acosto jamais em fofa cama,
contente e em paz, que nesse instante eu morra!
Se uma só vez com falsas louvaminhas
chegares por tal arte a alucinar-me
que eu me agrade a mim próprio; se valeres
a cativar-me com deleites frívolos,
súbito a luz da vida se me apague.
Vá! queres apostar?
      MEFISTÓFELES
                                   Se quero! Aposto.
       FAUSTO
Aperto mais: Se me chegar momento
a que eu diga: «Demora-te! És formoso»
então aos teus grilhões entrego os pulsos;
então a morte aceito; os sinos dobrem;
já livre estás de mim. Dessa hora avante,
quede o relógio! Caiam-lhe os ponteiros!
Acabou-se-me o tempo.
        MEFISTÓFELES
                                        Olhe o que afirma,
que entre nós outros nada esquece.
         FAUSTO
                                                         Embora!
Não me obriguei de leve. O que eu padeço
não é escravidão? Ser logo servo
de outro ou de ti, que monta?
      MEFISTÓFELES
                                                Às suas ordens,
desde já. Tem a nata dos serventes
para este bródio de barrete fora,
meu querido Doutor!
                                  Mais uma nica.
Há morrer e viver. É bom primeiro
pôr o preto no branco: um tudo-nada;
duas regritas só.
      FAUSTO
                            Que é! Papeladas
até no inferno, rábula! Bem mostras
entender pouco do que seja um homem.
[...]
Aqui surge a figura do pacto com o demônio assinado com sangue, tão copiado por muitos outros textos. Segue-se uma cena onde Mefistófeles fala a um rapazola que busca o conhecimento científico. É interessante o desprezo que Mefistófeles tem pelas ciências e pelo "progresso". Apenas agora começa a aventura de Fausto e Mefistófeles.

A primeira parada da dupla é em um bar de jovens. Fausto fica horrorizado com a "brutidade" dos jovens no bar e Mefistófeles prega uma peça nos jovens (não tão bizarra quanto as peças que o diabo de O Mestre e a Margarida prega nos habitantes de Moscou, mas ainda assim levemente divertida). Fico imaginando alguem representando essa cena, e como fazer a gota do líquido que os jovens bebem à voro transformar-se em chama do inferno e depois minguar. Claro, não é tão difícil de representar quanto a próxima cena, onde Fausto irá beber um líquido de onde sai labaredas.

A próxima cena é na casa de uma bruxa. Mefistófeles levará Fausto para beber uma poção, que fará o protagonista se apaixonar por Margarida (que aparecerá mais a frente). Essa cena é interessantíssima em cada parte e aspécto.
     FAUSTO
Mas porque há-de ser logo a preferida
a tal mondonga velha? Não podias
preparar-me tu próprio a beberagem?
     MEFISTÓFELES
Belo divertimento! Eu preferia
gastar o tempo em construir mil pontes.
Para arranjar os filtros desta casta
quer-se, além do saber, paciência e muita,
e atenção de anos largos; só co’o tempo
é que se alcança o fermentar completo
do líquido eficaz. Pois a quantia
d’ingredientes raríssimos! É certo
que o diabo é quem os sabe, e ensina tudo;
mas lá para os estar manipulando
é que não tem pachorra.
 Além dessa passagem, há muitas outras bem legais nessa mesma cena. A bruxa entra e não reconhece o diabo, que fica irado. Mefistófeles não quer ser chamado de Satanás pois esse nome "anda há já muito entre outros mil escritos/no volumoso ról das fábulas e mitos". A bruxa prepara a poção a fala expressões incompreensíveis (que lembra um pouco as Bruxas de Macbeth).
     A FEITICEIRA (empurra Fausto para dentro do círculo; e põe-se a ler no livro,
declamando com grande ênfase
)
Agora me explico,
Do um, dez fareis;
o dois deixareis;
o três uguareis;
e já sondes rico.
Lançar quatro fora.
Dos cinco e dos seis,
sete e oito fareis.
São estas as leis,
e andai-vos embora.
E os nove são um;
e os dez são nenhum.
E tenho acabada,
segundo cumpria,
toda a tabuada
da feitiçaria.
     FAUSTO (a Mefistófeles)
Ela estará com febre? A modo que extravaga.
     MEFISTÓFELES
Ai! de pouco se admira. Inda por ora a saga
do intróito não passou; e todo o calhamaço
vai no mesmo teor. [...]
     A FEITICEIRA (continuando)
A potência da ciência
que anda oculta em névoa escura,
só revela a sua essência
ao mortal que a não procura.
     FAUSTO
Que absurdo nos diz ela? A tantos disparates
já se me oira a cabeça; oitenta mil orates
não doidejavam mais.
 Depois de beber a poção (e um grito mudo de triunfo de Mefistófeles: "Que tal!/Coa dose que tomou, qualquer mulher que aviste/vai julgá-la outra Helena./ Ah sábio, alfim caiste!"), Fausto avista Margarida e por ela se apaixona. Fausto exige a Megistófeles a presença de Margarida e o demônio usa-se de retórica para fazer Fausto de bobo. Segue-se um quadro no quarto de Margarida, onde Mefistófeles esconde uma caixa de Jóias. Margarida chega no quarto e canta aquele que é um dos poemas mais famosos de Goethe em língua portuguesa, com 7 traduções diferentes até onde minhas pesquisas foram efetivas. A Canção do Rei de Tule, que também é uma ária da ópera francesa Fausto. Esse poema já havia sido publicado em outro livro de Goethe, e é republicado em Fausto. Isso também contribui para aumentar a aparência de que Fausto é um grande recorte e colagem da produção de Goethe em mais de 30 anos (que demorou compondo essa obra). Eis a canção na tradução de Castilho:
Reinava em Tule algum dia
um bom Rei tão fino amante,
que até morrer foi constante
à dama com quem vivia.

À hora do passamento
deixou-lhe ela um vaso d’oiro,
que foi do Real tesoiro
o mais falado ornamento.

Punham-lho sempre na mesa;
só por aquele bebia;
e o choro que então vertia
causava a todo tristeza.

Vendo o seu termo chegado,
repartiu pelos herdeiros
os bens, té aos derradeiros,
excepto o vaso adorado.

Foi isto em jantar de mágoas
que El-Rei deu à fidalguia,
em torre herdada que havia
ao rés das marinhas águas.

Como El-Rei houve bebido
o seu último conforto,
co’o braço já quase morto
levanta o vaso querido,

e por não deixá-lo ao mundo,
da janela ao mar o atira.
Ondeia o vaso, revira,
enche-se, e desce ao profundo.

No mesmo triste momento
em que o vaso se abismava,
o Rei seus olhos cerrava,
soltando o último alento.
 E aqui em uma versão um pouco mais decente, feita por Antero de Quental:
Era uma vez um bom rei
Em Tule, essa ilha distante,
Ao morrer, deixou-lhe a amante
Um copo de oiro de lei.

Era um copo de oiro fino
Todo lavrado a primor;
Se fosse o cálix divino
Não lhe tinha mais amor.

Seus tristes olhos leais
Não tinham outra alegria:
E só por ele bebia
Nos seus banquetes reais.

Chegada a hora da morte
Põs-se o rei a meditar
Grandezas da sua sorte,
Seus reinos à beira-mar.

Deixava um rico tesoiro,
Palácios, vilas, cidades;
De nada tinha saudades,
A não ser do copo de oiro.

No castelo da devesa,
Naquelas salas sem fim,
Mandou armar uma mesa
Para o último festim.

Convidou sem mais tardar
Os seus fiéis cavaleiros,
Para os brindes derradeiros
No castelo à beira-mar.

Então, vazando-a de um trago,
E com entranhada mágoa,
Pôs nas ondas o olhar vago
E atirou a taça à água.

Viu-a boiar suspendida,
'Té que as ondas a levaram
Os olhos se lhe toldaram,
E não bebeu mais na vida!
E a minha tradução ruim para o primeiro verso (seguida do "original em parênteses"):
Em Tule vivia um rei (Es war ein König in Thule)
Que, fiel, a sua dama (Gar treu bis an das Grab)
Uma taça de ouro em lei (Dem sterbend seine Buhle)
Deixou-lhe na eterna cama. (Einen goldnen Becher gab.)
Tá legal, chega de poesia lírica. Me desculpem as divagações, é que sou tão fã de poesia que me deixei levar... Voltando ao drama...

Pulando uma série de episódios menos importantes (mas nunca sem importância, mas como isso é uma resenha não posso falar de todos os inúmeros episódios de Fausto), Mefistófeles arruma uma maneira de aproximar Margarida e Fausto, aproveitando a morte do marido de Marta (amiga de Margarida), pretendendo usar Fausto como testemunha da morte (apesar de nenhum dos dois terem estado no local da morte, não duvido de Mefistófeles, afinal, de morte ele entende). Há entre Fausto e Mefistófeles um diálogo que ainda está muito atual:
     FAUSTO
É previdente a mulherzinha;
mas então claro está que antes da coisa,
temos de ir ver em Pádua a sepultura.
     MEFISTÓFELES
Santa simplicidade! O que é preciso,
é jurar que se viu,
     FAUSTO
                                Se não me alvitras
coisa melhor, gorado está o ajuste.
    MEFISTÓFELES
Beatíssimo varão! Gosto do escrúpulo.
Pois nunca nunca, em toda a sua vida,
deu testemunho falso?
                                    Que de vezes
não haverá, com magistral entono,
coração firme e intrépido semblante,
declarado o que é Deus! aberto o arcano
do mundo e das míriades dos entes
que o povoam! do homem, co’o sem conto
de afectos, de paixões, de pensamentos,
que n’alma e coração lhe tumultuam!
Meta, bem dentro, a mão na consciência,
e diga-me se tinha dessas coisas.
mais noção que da morte do Espadinha?
     FAUSTO
És, foste, e hás-de ser sempre um mentiroso,
e um sofista de marca.
     MEFISTÓFELES
                                       É isso: ápodos,
porque antevejo o que o Doutor não pesca:
que amanhã, por exemplo, o escrupuloso
há-de enganar, jurando-lhe mil honras,
e amores mil, a pobre Margarida.
     FAUSTO
E a-la-fé que não minto em protestar-lhos.
[...]
Seque-se a conquista de Margarida. Mefistófeles também conquista Marta, o que não dá em nada e nem é falado na obra. Há um interessante diálogo sobre religiosidade, que, longe de ser puro apologismo ou sofisma é deveras interessante. Há um afastamente de algum tempo (o tempo da diegese da peça é algo muito dificil de se tira) entre Fausto e Margarida. É uma das partes de maior lirismo amoroso da obra. Os dois se reencontram e planejam cosumar o amor. Margarida conversa com outra amiga sobre isso, e a amiga repreende. Aí sai mais uma passagem que ainda se mantém bem atual e bem coerente com a cultura brasileira:
MARGARIDA, ()
(Tomando também da fonte o seu cântaro, e partindo-se com ele para casa, em direcção diversa da de Luisinha)
Também eu no meu tempo, em vendo moça errada,
logo a punha por monstro: a língua era uma espada,
e feita eu própria ré de atroz descaridade
benzia-me, e ficava impando de vaidade!...
E hoje... incursa no mesmo!!
(Após alguns momentos)
                                              Oh! Deus! mas quem podia
livrar-se de um prazer, que as pedras fundiria?
[...]
 Segue-se mais um poema de Goethe que não pertencia à fausto, e logo depois o monólogo de Valentim (irmão de Margarida, e não, não me esqueci de falar sobre ele, Valentim só aparece agora e só depois ele é apresentado como irmão de Margarida, sim, a leitura de Fausto é meio confusa), seguido do confronto entre Fausto (ajudado por Mefistófeles) e Valentim, que culmina na morte do segundo. A próxima cena é uma sombria cena naa Igreja, no funeral de Valentim, com a presença de espíritos.

As ultimas cenas são as mais estranhas da dramaturgia. Primeira é uma mistura caótica de personagens aparecendo e agindo como num baile. A outra cena é tão mais estranha está fora e dentro da peça (Áureas Núpcias de Oberon e Titânia - Intermezzo). E vocês pensavam que a poética ultrafragmentária surgiu apenas no modernismo? Essa passagem me lembra as decidas ao inferno do Guesa de Sousândrade.

E por fim, depois de um diálogo entre Fausto e Mefistófeles, Fausto entra na prisão para buscar a sua amada que foi presa por matar a mãe e o filho depois de enlouquecer (e não, também não esqueci de falar sobre isso). Essa cena é sombria e sublime. Termina com a dicotomia entre a condenação e a salvação. Termina a obra mas não a história de Fausto. O livro termina com um gostinho de quero-mais, entretanto, todos sabem que a "Segunda Parte da Tragédia" nada tem de ligação com a primeira, mas é uma série de mais outras passagens de incompreensível conexão definitiva para o nosso pensamento.

Fausto é uma Obra Prima e tem motivos para estar no cânone e influenciando o pensamento até os dias de hoje. Uma obra magnífica, embora difícil. A tradução de Castilho deixa muito a desejar no quesito "lirismo". O estilo de Castilho é falso, plástico, granítico. Há na tradução de Castilho algumas passagens magníficas, mas outras são tão de mal gosto que não merecem nem ao menos ser comentadas. Apesar de ser uma obra dramática, presta mais ao papel de ser "lida como teatro" do que "encenada como teatro". A nota do livro só é mais baixa pois analiso o livro como um todo (de produção gráfica, prefácio, conteúdo à tradução), e a tradução de Castilho deixou a desejar um pouco.

Esse livro é um livro bônus do Desafio Literário do mês de Junho. A tradução de Castilho pode ser adquirida gratúitamente no site do Domínio Público ou da Universidade de Aveiro. O livro pode ser achado facilmente em sebos e livrarias, em outras traduções. Há pelo menos 5 traduções integrais da primeira parte do Fausto em português (sem incluir uma do Fausto Zero [Urfaust] pela Christine Röhrig).

Nota do Elaphar: 9,6

Edição Lida:
GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto. Prefácio de Otto Maria Carpeaux. Trad: António Feliciano de Castilho. São Paulo: W. M. Jackson, 1960, 323p. XXXVp. (Clássicos Jackson, v.15)

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Obras Literárias de Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha

Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha é considerado o primeiro poeta do norte do Brasil. Nascido no Pará (em uma região que hoje pertence ao estado do Amazonas), foi um poeta do Neoclassismo brasileiro (ou Arcadismo) que teve sua obra publicada apenas parcialmente e postumamente. Seu filho publicou o que sobrou da obra de Tenreiro Aranha (depois de uma série de acontecimentos que destruiu parte da obra do poeta) apenas bem depois da morte do escritor, e posteriormente, o estado do Pará republicou as Obras Literárias do escritor, onde encontra-se a poesia e teatro de Tenreiro Aranha.

Poesia de Tenreiro Aranha
A poesia de Tenreiro Aranha não é surpreendente, assim como não é surpreendente toda a poesia brasileira árcade. Tenreiro Aranha é um imitador dos clássicos, especialmente de Píndaro.

De píndaro Tenreiro tira a "forma" da maioria de suas odes (algumas intituladas "Ode Pindárica"), que são pindáricas de forma e conteúdo. Vê-se também a poesia laudatória de Píndaro também nos sonetos do poeta paraense, que na maioria das vezes são para louvar uma obra ou uma personalidade (política, militar ou religiosa). Seus melhores poemas são os sonetos, já que Tenreiro Aranha não tem muita habilidade com poemas muito longos (geralmente são cansativos em demasia).

Apesar de compor muitos poemas para "puxar o saco" de personalidades, alguns de seus versos possuem merecimento, assim como a maioria de seus poemas não laudatórios são belas poesias. Interessante é que, apesar de Árcade, em algumas ocasiões seu metro é um pouco irregular (principalmente nos acentos), mas essas irregularidades não são comuns. Eis dois poemas que exemplificam a poesia lírica de Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha:
Soneto
(Em louvor a Casa para depósito de pólvora construída em uma das margens do rio Aurá)
Do sacro Olímpo os deuses superiores,
Vendo já terminada a empresa clara
Que ao Aurá dá valor, e à nós ampara,
Lhe dão justos, magníficos louvores:

Juno louva a grandeza e seus primores,
Minerva admira a estrutura rara,
E Marte ali depósito prepara
De instrumento fatal de seus furores:

A mesma branda Vênus, e o Cupido
Se alegram (quem tal crera!) e para vê-la
Lindos ranchos já sei que vem trazido.

Só Jove não aplaude obra tão bela,
Por que já do seu raio retorcido
O Pará se não teme, depois dela.
Soneto
(A um passarinho, quando o Autor sofria vexações)
Passarinho, que logras docemente
Os prazeres da amável inocência,
Livre de que a culpada consciência
Te aflija, como aflige ao delinquente.

Fácil sustento, e sempre mui decente
Vestido te fornece a Providência;
Sem futuros prever, tua existência
É feliz, limitando-se ao presente.

Não assim, ai de mim! Porque sofrendo
A fome, a sede, o frio, a enfermidade,
Sinto também do crime um peso horrendo.

Dos homens me rodeia a iniquidade,
A calúnia me oprime; e, ao fim tremendo,
Me assusta uma espantosa eternidade.
Teatro de Tenreiro Aranha
O teatro de Tenreiro Aranha é, decerto, muito mais interessante que sua poesia (mas não "melhor" necessariamente).

É importante lembrar que o "Teatro Brasileiro" só irá surgir muitos anos após a morte de Tenreiro Aranha (em 25/09/1811), e ainda assim, as condições para a realização de uma apresentação teatral minimamente "aceitável" só irá aparecer no Auge da "Era da Borracha" (a belle époque amazônica). Apesar disso, várias apresentações teatrais "populares" (para não dizer de qualidade apresentativa duvidosa à la teatro elisabetano) aconteciam, seja no teatro municipal como nas ruas ou próximo aos rios.

Tenreiro Aranha (na verdade seu filho) foi o primeiro que publicou algumas dessas obras teatrais. O teatro de Tenreiro Aranha é bastante primitivo, usa de poucos recursos cênicos (nada de cenários elaborados ou grandes ações, é basicamente apenas declamação de poesia), e possui uma inconstância interessante: alguns momentos uma boa apresentação lírica, outras vezes cansativo, mas quase sempre ininteligível teatralmente.

Assim como sua poesia, seu teatro é basicamente laudatório. Um exemplo é essa cena da "peça" Os Pastores do Amazonas, que procura enaltecer o nascimento da neta do Rei do Brasil (assim como o aniversário do rei):
(Fragmento da 2ª Cena)
[...]
    ELISA
Salve Breno..
    BRENO
Adeus, prezada Elisa,
Dize-me, acaso foram tuas vozes
Sempre doces, mas hoje mais suaves,
As que, soando neste bosque umbroso,
Suspenderam os Zéfiros, e foram
Despertar meus sentidos, que em sossego
À sombra do arvoredo repousavam?
Dize, amável Serrana; e se tu foste,
Contínua a cantar, que dos raminhos
Já pendem para ouvir-te os passarinhos.
    ELISA
Não, Breno, eu não fui, nem sei quem fosse
D’entre nossos Serranos, que pudesse
Cantar tão digna e tão suavemente.
O mesmo assombro, que essa voz te causa,
Também sentido, venho diligente
A causa examinar. Em nossos campos,
Repara, meu Breno, neste dia,
É tal a amenidade, que parece
Que a mesma natureza alegre vejo.
Tudo prazer respira, os ares puros,
Os velhos troncos com viçosas flores,
Os doces passarinhos gorjeando,
Tudo, tudo denota neste dia
Não sei que novo gosto.
    BRENO
                  Sim, Elisa,
Os Deuses nos protegem certamente,
E nossos ledos e ditosos campos
Hoje parecem deles Habitados
    CORO (dentro)
Do largo Amazonas,
Felizes pastores,
Soltai doces vozes,
Ornai-vos de flores;

Fazei memorável
Tão ditoso dia,
Celebrando o Nome
Da Excelsa Maria

Nele dois presentes
O Céu nos envia;
Celebrai o Nome
Da Excelsa Maria
 Além d'Os Pastores do Amazonas, há outras duas peças dramáticas de Tenreiro Aranha no mesmo livro: "Drama Pela Fundação da Casa Para Depósito de Pólvora no Rio Aurá" e "A Felicidade do Brasil", ambos em um só ato.

O "Drama Pela Fundação da Casa Para Depósito de Pólvora no Rio Aurá" é uma peça de apenas três personagens praticamente sem ação cênica (apenas declamação), onde o Gênio Tutelar do Pará conversa com uma Ninfa do Amazonas e o Aurá. É um texto bastante simples com um ou outro verso de valor, mas a maior parte do texto é cansativo e repetitivo.

"A Felicidade do Brasil" é um drama bem interessante, com uma representação cênica bem mais elaborada, com atores indo e vindo de dentro e fora da platéia, terminando com os atores escrevendo mensagens em pilares que se erguem. A temática é ufanista. O motivo da composição foi o aniversário do Principe Regente do Brasil, e a peça foi encenada no dia 13 de Maio de 1808. É uma obra que possui algum valor, retirando-se os longos períodos de enaltecimento do Príncipe:
   GÊNIO DO BRASIL
                                   Ninfa bela,
Inda não sabes tudo; eu tenho ainda
A revelar-te novas, grandes coisas:
Saberás pois que neste mesmo Dia,
Dia brilhante memoravel, fausto,
Para bem do Brasil, e para glória
Dos humanos, do mundo inteiro digo,
Nesceu esse bom Príncipe adorado,
Que por Senhor, e Pai tu reconheces;
Hoje renova alegre o Sol luzente
O seu Aniversário majestoso;
 Apesar de todas as deficiências (e elas são muitas), a obra de Tenreiro Aranha possui alguns momentos de grande lirismo, seja na poesia lírica, seja na teatral. Podemos também justificar algumas deficiências devido o problema estrutural do teatro e da literatura brasileira da época.

Esse livro (ou parte dele) é um livro bônus do Desafio Literário do mês de Junho. Não é um livro fácil de ser encontrado (pois está esgotado a muito tempo). Pode ser conseguido com maior facilidade em sebos ou em alguma biblioteca.

Nota do Elaphar: 8,1

Edição Lida:
TENREIRO ARANHA, Bento de Figueiredo. Obras Literárias de Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha. Belém: SECULT; FCPTN, 1989, 171p. (Lendo o Pará, v.1)

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Lição de Botânica - Machado de Assis

Quando escolhi minhas leituras para o Desafio Literário do mês de Junho, pensei primeiramente nas obras que ainda não li dos maiores autores "clássicos": Eurípedes, Shakespeare e Machado. Resolvi não ler Eurípedes por dois motivos: 1º não sei se tenho ainda "ouvido" para a tragédia grega, e 2º minha edição de Eurípedes é uma vergonha, e sua edição não devia nem ser comentada. Então ainda me resta Shakespeare, Machado e outros que me der vontade de ler no caminho.

Machado de Assis é sem sombra de dúvidas o maior nome de nossas letras, e, apesar de ter escrito em praticamente todos os gêneros literários conhecidos (do romance ao libreto de ópera, da crônica à tradução), é basicamente conhecido pela tríade Romance, Conto e Crônica. Se na resenha de Ocidentais tentei mostrar a poesia desse grande escritor, procuro agora mostrar outra parte de sua obra relegada ao esquecimento: o teatro.

Toda grande nação possui um grande escritor do gênero teatral, ou é isso que a história literária nos diz. A grécia possui Sófocles e Eurípedes, a Inglaterra possui seu Shakespeare, a Alemanha seu Hofmannsthal e seu Goethe (além dos libretistas, como Wagner), portugal seu Gil Vicente e seu Camões. Apesar de muitas vezes a arte dramatúrgica ser considerada de segunda importância (até pelos próprios escritores), o teatro é uma das mais magníficas formas da literatura. O Brasil, lastimavelmente, não possui uma tradição teatral histórica. O teatro brasileiro surge muito tardiamente, influenciado fortemente pelo teatro francês. Até mesmo o Shakespeare que era representado em nossa terra no século XIX era um Shakespeare afrancesado (baseado em imitações neoclássicas de Dulcis), e não o Shakespeare elisabetano.

Assim como em outros países, no Brasil grandes escritores escreveram também para teatro (como José de Alencar e Machado de Assis). A obra teatral do grande mestre Machado é julgada geralmente inferior ao restante de sua obra, e não posso dizer que isso não é verdade, mas também não é culpa unicamente do escritor: todos os dramaturgos brasileiros desse período sofriam do mesmo mal, ou a peça era ruim ou não era "encenável".

A obra teatral de Machado de Assis, como afirmou Quintino Bocaiuva, é mais para ser lida do que para ser encenada. Lição de Botânica não foge à essa máxima, apesar de ser, dentre as peças de Machado, a mais "encenável" (embora seria muito mais sem graça do que no papel). Lição de Botânica conta a história de três moças (Dona Leonor (irmã mais velha), Dona Helena (irmã mais moça, viúva) e Dona Cecília (sobrinha)), o Barão Segismundo de Kernoberg (sueco, botânico) e Henrique (sobrinho do Barão, não aparece na peça).

Cecília e Henrique possuem um "rolo" (se é que existia isso na época, mas é o que me parece), e o Barão, amante da ciência, quer que toda a família das moças se afaste, já que casamento não combina com a ciência. O Barão faz o pedido à D. Leonor (o pedido de afastamento), e acaba esquecendo um livro na casa das moças. Cecília fica triste, e Helena têm um plano para o Barão cancelar sua decisão. Ao buscar o livro Helena procura falar sobre seu interesse em botânica, e o Barão, interessado, lhe propõe dar algumas Lições de Botânica. Daí aparece o diálogo central e mais incisivo da narrativa:
D. HELENA - Só uma coisa lhe acho inaceitável.
BARÃO - Que é?
D. HELENA - A teoria de que o amor e a ciência são incompatíveis.
BARÃO - Oh! isso...
D. HELENA - Dá-se o espírito à ciência e o coração ao amor. São territórios diferentes, ainda que limítrofes.
BARÃO - Um acaba por anexar o outro.
D. HELENA - Não creio.
BARÃO - O casamento é uma bela coisa, mas o que faz bem a uns, pode fazer mal a outros. Sabe que Mafoma não permite o uso do vinho aos seus sectários. Que fazem os turcos? Extraem o suco de uma planta, da família das papaveráceas, bebem-no, e ficam alegres. Esse licor, se nós o bebêssemos, matar-nos-ia. O casamento, para nós, é o vinho turco.
D. HELENA (erguendo os ombros) -Comparação não é argumento. Demais, houve e há sábios casados.
BARÃO - Que seriam mais sábios se não fossem casados.
D. HELENA - Não fale assim. A esposa fortifica a alma do sábio. Deve ser um quadro delicioso para o homem que despende as suas horas na investigação da natureza, faze-lo ao lado da mulher que o ampara e anima, testemunha de seus esforços, sócia de suas alegrias, atenta, dedicada, amorosa. Será vaidade de sexo? Pode ser, mas eu creio que o melhor premio do mérito é o sorriso da mulher amada. O aplauso público é mais ruidoso, mas muito menos tocante que a aprovação doméstica.
BARÃO (depois de um instante de hesitação e luta) - Falemos da nossa lição.
D. HELENA - Amanhã, se minha tia consentir. (Levanta-se). Até amanhã, não?
BARÃO - Hoje mesmo, se o ordenar.
 Se você leu esse diálogo até o fim já sabe tudo o que vai acontecer. Helena aparece para a lição, o Barão fica confuso, cancela a lição, vai à casa de D. Leonor pedir a mão de Cecília para seu filho e a de Helena para si próprio. Previsível, chato e cliché. O livro termina com a fala de Helena (de gosto discutível): "Não se admire tanto, titia; tudo isto é botânica aplicada.".

A sensação que tive ao ler o livro: se eu tivesse lido só esse fragmento aí em cima saberia toda a história e não teria perdido nada (ou seja, li o livro inteiro em vão). Esse é o tipo de texto que só se mantém vivo por ser de um grande escritor (nesse caso: Machado de Assis), mas é uma obra que não vale a pena retirar do esquecimento, não acrescenta em nada a obra do grande mestre. Ah, e o livro têm umas duas referências diretas ao teatro francês (Musset) e uma certa semelhança com as primeiras comédias de Shakespeare. De resto, não recomendo nem um pouco, mas se tiveres vontade de ler, o livro é pequeno mesmo.

Esse livro faz parte do Desafio Literário do mês de Junho. Para conferir a lista do desafio clique aqui. O livro é fácil de ser encontrado, costando em qualquer edição da Obra Completa de Machado ou de Obras Teatrais. Também está disponível gratuitamente em uma infinidade de páginas na internet, já que o texto está em Domínio Público.

Nota do Elaphar: 7,8

Edição Lida:
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Lição de Botânica. in: Obra Completa. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Disponível em: http://machado.mec.gov.br/images/stories/html/teatro/matt10.htm .

sexta-feira, 3 de junho de 2011

A Volta do Parafuso - Henry James

Henry James é considerado por muitos um dos maiores escritores norte-americanos, merecendo apreço de outros grandes escritores como Josef Conrad, e considera-se que suas obras estão carregadas de fundo psicológico. A Volta do Parafuso (ou Os Inocentes) é um de seus livros mais famosos, contando até com uma famosa adaptação cinematográfica.

O livro inicia-se com uma narração de história sombria numa velha casa no Natal, onde um dos amigos de Douglas (um dos narradores do livro) contou uma história onde uma aparição surgia para uma criança. Os que ouviram a história ficaram estarrecidos, mas Douglas lembrou de outra história "horrível demais". O nome do livro provém de uma expressão usual (Another turn of screw) que significa aumentar a tensão, sofrimento, dor e etc... Se uma história horrível é mais horrível ainda com a presença de uma criança, o que diria de duas? Esse é um ponto chave da narrativa: duas crianças, dois adultos, duas aparições e duas voltas.

Antes de falar um pouco mais do duplo, a narrativa possui 3 narradores, um que narra a noite de Natal e comportamento do amogo Douglas, depois o próprio Douglas narra o como ele conseguiu o manuscrito e dá um prólogo da narrativa, depois Douglas lê a narrativa de um manuscrito escrito pela protagonista da história, e terceira narradora. Além de não termos uma narração direta, a narrativa é complexa, profunda e que não se reduz à um único caminho, o que torna dificil (e praticamente impossível) "fechar" uma análise profunda da obra sem cometer o pecado da omissão, e, por outro lado, uma análise superficial demais é (além de impraticavel) um assassinato ao livro, que já ataca os leitores vulgares e superficiais no primeiro capítulo. Também vou tentar evitar spoilers o máximo possível, mas de qualquer modo, o desfecho da história não é mais importante (e interessante) que seu desenrolar.

A narração é magnificamente complexa e ao mesmo tempo saborosa de se ler. Apesar de, a princípio, achar-mos as crianças "plastificadas", percebemos a importância disso para o próprio desenrolar da obra. O clima sombrio que James constrói, além dos "labirintos" da narrativa nos guiam por diversos caminhos de leitura. Se você acha uma discussão inacabada o tradicional "Capitu traiu ou não traiu Bentinho?", o que dirá de uma narrativa onde tudo é dúvida? A visão é uma dúvida, as aparições, as crianças, a loucura, enfim... tudo.

Apesar de ser apenas um livro, em A Volta do Parafuso dois outros textos se fazem presente (e eu se fosse vocês procuraria lê-los o mais rápido possível): O Homem de Areia (Der Sandmann) de E.T.A.Hoffmann e o poema O Erlkönig (Der Erlkönig, também conhecido como Rei dos Elfos) de J.W. von Goethe. O Homem de Areia é um livro bem fácil de encontrar por ser um "clássico" do Romantismo Alemão, embora deve-se ter cuidado com as adaptações infanto-juvenis do livro, já que elas tiram todo o clima absurdo, sombrio e violento do livro. Para quem lê inglês ou francês, o Erlkönig é um dos poemas alemãos mais traduzidos. Para os monolíngues as únicas opções legíveis do Erlkönig são as traduções portuguesas (que podem incomodar os brasileiros devido aos "a ver", "rebento" e etc...) e a tradução anotada que fiz recentemente (e pode ser conferida clicando aqui), as outras traduções que podem ser achadas na internet não são minimamente legíveis.

Há relações óbvias com o enredo de O Erlkönig (a aparição à uma criança, o adulto tentando proteger, a morte e etc...), o que me leva a crer que a referência inicial à uma história horrorosa é uma referência ao Erlkönig. Para além das referências óbvias, ambos os textos são polissêmicos ao extremo: o que é realidade? o que é loucura? quem vê demais? quem não vê? seria doença?. A visão é outro ponto chave da narrativa, e me remete diretamente ao Homem de Areia, onde a narrativa se baseia na dúvida, no ver e não ver (no Homem de Areia o órgão da visão também é fundamental: o Homem de Areia joga areia nos olhos, a boneca robô têm seus olhos arrancados e etc..) e isso é chave importante nas três narrativas (isso considerando o poema de Goethe como narrativa).

Além da visão e dúvida (e por consequência a loucura), outro tema chave da narrativa é o duplo. Uma análise mais superficial nos dá uma rápida visão de que A Volta do Parafuso é um Erlkönig duplicado, mas não é somente isso, pois além de dois adultos, duas aparições e duas crianças, os fantasmas aparecem duas vezes em cada lugar (na torre, no lago, na escada e etc...), a preceptora vê seu patrão apenas duas vezes, o Peter Quint (uma das aparições) pode ser compreendido como uma duplicação da imagem do patrão, assim como a segunda aparição uma duplicação da imagem da preceptora (além do fato de haver duas preceptoras), e poderia ficar citando imagens duplicadas durante horas a fio. Essa duplicação também aparece de forma marcante no Homem de Areia na imagem (ou na possíbilidade) do ser duplo (der Doppelgänger). Seria Coppola um Doppelgänger de Coppelius? Da mesma forma que as aparições seriam duplicatas dos adultos?

As comparações que faço não são arbitrárias. A concepção dos três livros se assemelha, assim como seus temas e simbolos. Além disso, Goethe é uma influência incontestável (diretamente ou não, intencionalmente ou não) em praticamente tudo o que se fez depois dele, e Hoffmann é a base fundamental da narrativa sombria (em alemão Schauerliteratur), e influenciou diretamente um sem número de obras, particularmente em obras de língua inglesa. Apesar das obras anteriores nos ajudarem a compreender a gênese e significado de muitos símbolos e palavras-chave da narrativa de James, A Volta do Parafuso não se fecha apenas nisso, e a superficialidade (não intencional) de quem se aventura a escrever sobre esse romance é inevitável. Por conta de todo o jogo narrativo e interpretativo do texto, além do prazer que a leitura me ofereceu (crédito não só do autor, mas também da edição e tradução. Parabéns Hedra, Marcos Maffei e Marcelo Pen), esse livro merece (junto com Lolita de Nabokov) a nota máxima dada por esse humilde blog.

Nota do Elaphar: 10

Edição Lida:
JAMES, Henry. A Volta do Parafuso. Trad: Marcos Maffei. Introdução de Marcelo Pen. São Paulo: Hedra, 2010, 182p.
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